Dá para (continuar a) morar aqui...?

Francisco Bradford Câmara
#Chronicle

Um dia fui ver uma casa na Lagoa, em São Miguel. Uma casa de ratos.

Estava à venda há mais de três anos por 147 000. Ninguém lhe tinha pegado. Era uma casa dividida em duas frações, um T2 e um T1. O T1 caía de podre, inabitável. O T2, morada temporária de uma família numerosa, seguia os passos do T1. Uma ruína em formação. O cheiro a mofo, a morrinha e a mijo de cão eram demasiado intensos. Salvou-nos termos feito a visita de máscara.

Depois de sairmos da casa, ainda abananados pelos cheiros e cenário sinistro, disse ao consultor que o imóvel como estava não devia valer mais que 100 000. Eram precisas muitas obras, ninguém no seu perfeito juízo ia pagar mais do que isso. Aconselhou-me a fazer uma proposta por esse valor. Como gostava da localização, assim fiz. Foi recusada pelo proprietário. Após essa minha oferta a casa passou a estar à venda por 195 000.

Esta história e muitas outras que têm sucedido um pouco por todas as ilhas fazem parecer, pelo menos a mim que me entretenho a formular sentidos e significados em toda a parte, que a ganância ganhou fôlego nos últimos anos.

Não sei exatamente que causa, ou conjunto delas, levou a que estejamos ultimamente tão centrados nos nossos bolsos. Ou sei, pelo menos em parte, mas não estou interessado em escarafunchar por aí. O que me interessa é que por cá, nos Açores, gostamos cada vez mais de dinheiro, do que ele compra e do que permite ostentar.

Carro novo, unhas de gel, PCs para gaming, telemóvel da moda, Zara, Bershka e Pull and Bear, tudo sob a égide das redes sociais. Facebook é a nova missa, Instagram as festas de freguesia. “Em nome do Iphone, do tablet e das sapatas New Balance”. O Espírito Santo parece ser chão que já deu uvas, que nos ilumine agora o Santo Consumismo, padroeiro do brilhoso, descartável e acessório.

Apanhamos tarde a boleia do consumo, mas, porra, como queremos um veículo estiloso para fazer essa viagem! Criamos nada, ganhamos pouco e queremos tudo. Tentamos ganhar tudo com muito pouco. E o mais certo é um dia esquecermo-nos de quem fomos, obcecados com uma conta gorda no banco ou com um qualquer pechisbeque novo que reluz.

Não me interpretem mal, sou fã da prosperidade. Há imensas vantagens na riqueza que a pobreza não deve impedir. Mas há umas poucas vantagens da pobreza que a riqueza não deve ocultar. Humildade, sentido de comunidade e de partilha são pormaiores que podem ficar para trás quando andamos focados na caça ao guito. Esses eram os nossos maiores tesouros. É para abrir mão deles em definitivo?

Talvez isto da ganância e do consumismo seja apenas um sinal dos tempos... Mas temos mesmo que aceitar os tempos que nos dão ou podemos criar os nossos? Não dá para continuar a ser quem somos e tornarmo-nos prósperos? É impossível sermos ricos sem nos tornarmos gananciosos e consumistas?

Tem já alguns anos que procuro casa para morar. Intensifiquei a busca este ano, depois de ter uma bebé e achar conveniente dar-lhe um teto permanente. Não que seja necessário, que nos países ricos do norte grande parte não tem casa própria. Mas ao preço que por cá os arrendamentos andam...

Está tudo tão caro. Na região só o marmaço, a humidade, a falta de tacto, de criatividade e de arrojo continuam a um preço simbólico.

Valha-nos isso.

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Francisco Bradford Câmara
Gestor de operações em Turismo, criador de conteúdo e copywriter nascido em Ponta Delgada (1985).
É conhecido pela persona "Balada Brassado", um rapper satírico e humorista ficcional que aborda questões sociais, culturais e ambientais. 
Tem escrito scripts para anúncios de TV, online e rádio, assim como conteúdo para websites de empresas e organizações. 
É licenciado em Turismo, mestre em Gestão Estratégica de Turismo e tem um diploma em Estratégia de Marca e Storytelling.