Delenda est lusitana res

Manuel Tomás
#Chronicle


Sou Fenício, mas vivo num maroiço português.
E do maroiço, espreito o mundo

Numa manhã de chuva copiosa, lembrei-me dos maroiços e da sua origem, que alguns querem anterior ao povoamento português. Assunto recorrente aqui no Pico, alimentado pelo poder autárquico, desenvolvido por arqueólogo useiro e vezeiro em grandes descobertas, e toda a gente contente e rindo, pelo inusitado da coisa e pela expectativa de uma importância que até aqui a História, como tem sido contada e certificada, não conseguiu atribuir a tão nobre gente. 

Para o Pico, modestamente, até já eu lhe descobrira uma origem divina e tudo, fundamentada na profunda ligação que Vénus tinha aos Portugueses, pois achava que a língua dos marinheiros era a mesma dos seus Romanos, com pouca corrupção, esclarece Camões. 

A palavra pico deriva do grego, através do latim: pikós – picu(m) – pico. Pico era um antigo rei do Lácio (Latium), onde o latim era a língua falada, e onde fica a região de Roma.  Pico era filho de Saturno e avô de Latino. Foi transformado em picanço por Circe, por ter repudiado o amor da feiticeira. Camões, na Écloga VII, cantou assim: “E Pico, a quem ficaram inda as cores/ Da púrpura real, que ter soía/.../ Mas contra o Fado, enfim, nada resiste.” É o fado que nos trama!

Pico era um magnífico adivinho e, ao que bem parece, continua através da Montanha do Pico e, em especial, do seu pico pequeno. O picanço era uma ave profética em Roma e também estava consagrada a Marte, deus da guerra, tendo ajudado a loba a salvar os gémeos Rómulo e Remo. Talvez por isso, muitos rezem à Montanha do Pico. É o Pico do Pico! É Pico! E é épico! 

Devemos, pois, associar o Pico à sua nobre origem romana e divina.  O que não é pouca coisa!

Mas, o que é preciso é destruir a coisa lusitana! A coisa portuguesa. Não foram os Portugueses que fizeram os maroiços. Ponto final sem parágrafo. E continuando, assim se explica o título da crónica. É preciso destruir a coisa lusitana. Foram os Romanos que disseram delenda est Carthago, é preciso destruir Cartago, a grande cidade fenícia que dominava todo o comércio no Mediterrâneo, e conseguiram. O mesmo se passa com a história da ilha do Pico. Temos de a modificar. Não tenham medo! Caramba!

Desta vez tive sorte e fiquei convencido. Saí de casa debaixo da chuva, que fazia ligeira trégua, e fui até à fabulosa e enorme bolha vulcânica do Guindaste, onde em dias de muita dúvida, me sento a meditar e a procurar entendimentos. Estava lá um homem, novo na terra, falava um espanhol pior do que o meu, mas estava pescando e disse-me que era fenício, da zona da antiga Cartago. Maravilhado fiquei. Então, disse-me que os seus parentes tinham conservado, desde a derrocada de Cartago, na última guerra púnica, mais precisamente após a batalha de Zama (146 aC), onde Aníbal foi derrotado por Cipião, um documento escrito, e esse documento falava do Pico. De uma ilha muito alta no meio do Atlântico. Maravilha! Estava tudo explicado. Ali estava o que sempre me faltara. Um documento atestando a origem dos maroiços do Valverde. Na leitura que fiz, julguei mesmo ver a indicação do topónimo, Vlvrd. Estava lá e só faltavam as vogais que os Gregos haviam de emprestar aos fenícios para melhor leitura.

Alguém, muito entendido, assegurou que 80 maroiços já existiam em 1450 e que os picarotos depois é que foram, ao longo dos anos, adaptando às suas conveniências. Certíssimo. Portanto, meu pai, quando era criança, na década de trinta do século passado, andou adaptando certo maroiço, com os seus sete irmãos, a irmã ficava em casa, no Valverde. Coincidências.

Eu devo ser fenício. Bem que os gregos de Creta, há muitos anos, achavam-me originário do norte de África, e uma vez na Dinamarca, no aeroporto, toda a gente do meu grupo passou e eu fiquei para verificações, e já éramos da União Europeia. Em Boston, já fiquei preso duas vezes no aeroporto. Tudo agora bate certo. Eu sou fenício e daí a desconfiança. Como é que nunca me lembrei antes disto?

Delenda est lusitana res. Deve ser destruída a coisa lusitana. Deve ser destruída a origem portuguesa dos maroiços do Pico e logo da História que tem vigorado até aqui. Estou agora mais descansado. Descobri o segredo com aquele simpático fenício que estava pescando na bolha vulcânica do Guindaste. Aquela bolha vulcânica gigante do Guindaste, de certeza, é anterior à chegada dos Portugueses ao Pico. 

Nasci no maroiço/ vivo no mar/ e alimento-me com o som/ Que os olhos apalpam.

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Manuel Tomás nasceu e vive na Ilha do Pico, entre o mar e a montanha, sobre rochas e sob salgueiros, sempre perto de maroiços. Professor e jornalista. Presidiu a três escolas básicas e secundárias, no Faial e no Pico. Fundou, dirigiu e dirige o semanário Ilha Maior, e preside ao Círculo de Amigos da Ilha do Pico. Publicou crónicas, poesia, romance e estudos variados.