Do East Village ao Corpo Santo.

Sara Leal
#Editorial

21:23 estava eu a sair da Silveira. É este o privilégio de morar aqui, nos Açores.

A água estava límpida. O cais habitado por dois pescadores e por um miúdo que contava os peixinhos que iam saindo agarrados à linha.

O chapinhar da água e o cair da noite. As luzes de rua ligaram-se quando ia a subir as escadas na saída deste meu ritual de purificação. É ali que me tempero, no mar. É esse, também, motivo do meu regresso pródigo a casa.

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Agora, já no bairro do Corpo Santo, sentada no pátio urbano cá de casa entre plantas e mobiliário de jardim, a banda sonora é a do buliço estival das famílias reunidas após o jantar, entre os pátios e o interior das casas, o latir dos cães a chamar a atenção dos donos com casa cheia como demanda a época, a rega dos quintais pautada pela conversa sobre a quantidade de água que a planta em questão deve receber ou o edredão que é preciso recolher porque amanhã vai chover e vai ficar encharcado, os garajaus a passar, as crianças em reboliço em tempo de deitar, o rádio do Sr. António, o sino da igreja a tocar. São 23:00. Não é preciso ter relógio quando se mora na cidade.

Bebo uma Especial bem gelada e trinco uma Espécie de São Jorge – nova qualificação de jantar. O banho saciou-me.

É esta a movida do bairro. O bairro é uma unidade de vida, como uma célula. A primeira vez que tive a sensação de viver num bairro foi em Nova Iorque, quando estive a estudar cinema. Foi na rua 9 entre a 1.ª e a 2.ª Avenida que tive esta sensação de vida que vai acontecendo em paralelo. Numa pequena área tinha o café Mud, a padaria, o supermercado, o deli para as emergências a qualquer hora da noite, a lavandaria, a creperia The Crooked Tree, o restaurante Mogador, o bar Internacional, o Niagara e o Antagonist Movement, o Thompkins Square Park, o povoado e colorido da St. Marks Place, o brunch com mimosa no The Smith, e todo um mundo de experiências à espera de serem vividas sem vacilar – o New York Minute é muito mais rápido que o convencional. E as pessoas, claro, são as pessoas que lhe conferem todo o movimento. Encontrava a Shpiqe na padaria de regresso a casa, o Sebastian a arrumar a mota à porta do prédio, o Joe a controlar as entradas do bar, e tantos outros nomes e caras, dos quais muitos não me recordo, mas que faziam parte do quotidiano. É uma cidade que vive no presente.

Certo dia de inverno, estava eu na rua 17, em Union Square, e eis que me assalta uma sensação de claustrofobia imensa, uma desorientação grande, e a única coisa que eu conseguia pensar era em ver o mar. Meti-me no Q, sem hesitações, e zarpei rumo a Coney Island. Estava bastante frio, mas tudo o que importava era ver aquela linha ténue que me faz sentir em casa. Senti o cheiro do mar e o espraiar das marés – menos familiar que o escoar entre as pedras roladas. Ali estive algum tempo apenas a olhar o que para um ilhéu é o início do mundo. Humedeci a respiração de ressalga. E enfim, apaziguei. Foi ali que tive a certeza que era ilhéu. Foi preciso ir para outra ilha (Manhattan) para me aperceber disso. Um detalhe.

Nunca mais tive essa sensação outra vez. Penso que só precisava de me localizar, e para isso havia que saber para que lado era o meu mar.

E assim continuei a minha vida, filmei, acabei o curso, filmei mais, produzi, escrevi com facilidade porque me sentia parte daqueles códigos, e ali eu tornei-me açoriana. Não nasci nos Açores, mas cresci nestas ilhas – que me adoptaram desde logo. E apesar dessa pertença ter tido questões latentes por resolver durante muito tempo, porque não é fácil vir de fora, a minha verdade é essa. E eu apresentava-me sempre como sendo daqueles 9 pontinhos no meio do Oceano Atlântico. Finalmente percebi que podia assumir que era daqui.

Entretanto regressei, e não foi uma decisão muito pensada. Digamos que tive uma espécie de chamamento, vindo da Caldeira de Santo Cristo, que me fez vir filmá-la. Depois deixei-me ficar porque a ilha assumiu-se como o meu território de criação.

Talvez tenha ficado em mim a vontade de viver num bairro, de assumir a geografia dos sítios, de estar no centro do buliço, e saber recolher-me de forma eremita numa concha quando necessário.

Nova Iorque é uma cidade com cinco bairros. Tem cerca de 8 milhões de habitantes, portanto muita competição, uma diversidade cultural imensa, as pessoas têm a capacidade de fazer decisões rápidas e saber o que querem – e ninguém ali vive bem sem saber o que quer no presente momento – e andam nos passeios a alta velocidade num código próprio que faz com que ninguém choque, excepto os turistas ou os novatos, e, apesar disso tudo, ou talvez por isso tudo, é uma cidade em que se sente a força do colectivo. As pessoas sabem unir-se para criar mudança, para criar movimentos, para reagir ao mundo. É sem dúvida algo que senti na pele e que penso ser uma característica admirável que faz com que aquela cidade se renove como um movimento perpétuo. Não é uma utopia, nem um desejo romantizado. É possível. E acontece. Pode ser algo construído e assente na necessidade de ter uma linguagem comum a toda a sua diversidade. Mas, reitero, é possível.

Há um sentimento de pertença, de solidariedade, de simbiose entre pessoas que fazem parte daquele lugar, mesmo que não se conheçam todas. Como gostaria de importar para cá esse espírito de comunidade, que depois se desdobra, é certo, em grupos, nichos, e indivíduos.

Podemos não ter a diversidade nova iorquina, mas somos pessoas de terra e de mar, somos o epicentro do Atlântico, zona de passagem de navegadores, do mar e do ar, sítio de importantes classificações mundiais, palco de acontecimentos internacionais, território edificado em três placas continentais, local de gente que aprendeu a viver sob o signo insular, a reconstruir cidades, a sonhar califórnias de abundância, a estabelecer os interesses de uma região ultraperiférica, a lutar por eles – podemos fazer ainda mais. Os Açores somos nós que pertencemos a este lugar, incluindo aqueles que não estando cá, carregam esta terra pelo mundo fora, estes 9 pontinhos no meio do mar.

É este o espírito da 9 Bairros, é criar esse espaço colectivo. É criar união. Temos a missão de estabelecer pontes entre estes nossos bairros marítimos - designação que definimos como unidade essencial arquipelágica neste projecto piloto do Azores 2027.

Esta publicação pretende ser essa evidência, e fazer ver que estamos juntos, mesmo quando o mar nos cerca em 9.


Sara Leal
Sub-editora da 9 Bairros


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia