A ética é mais importante do que a fé

José Júlio Rocha
#what you want is talking

Entrevista por João Aranda e Silva

Quem é o sacerdote José Júlio Rocha?

Sou eu. Em primeiro lugar, açoriano, terceirense, filho espiritual da cultura bela e única do Ramo Grande, amante das tradições da nossa gente. Frequentei o Seminário Menor de Ponta Delgada e o Seminário Episcopal de Angra, até ser ordenado em 1992. Completei os estudos em Roma, com o doutoramento em Teologia Moral, nomeadamente nas fronteiras entre a teologia e a literatura, arte que sempre me apaixonou. Sempre fui um leitor, por vezes compulsivo, de romances, novelas, poesia. Vejo em toda a arte algo de religioso, no sentido genérico da palavra, isto é, um mergulho na alma humana e no destino do homem, que o transporta para além da conspícua superficialidade dos dias e dos lugares. Tenho, neste momento, duas paróquias e sou professor de Ética e Doutrina Social da Igreja no Seminário. Sou admirador confesso do Papa Francisco, que é um dom para a Igreja e para o mundo. Gosto de ter um olhar crítico sobre as realidades deste mundo, inclusivamente da Igreja, porque é necessário, para não pararmos no tempo como, infelizmente, acontece muitas vezes.

Qual foi o principal Húmus da sua vocação?

Sempre tive uma paixão muito especial por Jesus Cristo. Primeiro como personagem histórica, verdadeiramente revolucionária e libertadora, a mais importante figura da história da humanidade. Ainda hoje, dentro e fora da Igreja, estamos muito longe dos ideais e da mensagem de Jesus Cristo, da Sua revolução do amor, da forma como mostrou que o próprio Deus não é senão Amor, da Sua ideia, única na história, de uma fraternidade universal que, ainda hoje, mesmo dentro da Igreja, está muito longe dos ideais do seu fundador. Mas também uma paixão especial por Cristo, a pessoa divina, que continua viva e me acompanha todos os dias, quando converso com Ele e, sobretudo, o ouço. Sempre entendi a Igreja como espaço para a liberdade do amor, que o é, apesar das imagens e dos estereótipos, infelizmente muitas vezes confirmados. Fui para o seminário porque queria mudar o mundo, modéstia à parte… continuo com esse sonho, embora com os pés na terra. A vocação não é alguma coisa que sentimos dentro de nós, não é uma qualidade nem um jeito para qualquer coisa. É tão simples como isto: Jesus precisa de mim, cá estou eu. Quem escolhe um estilo de vida a pensar mais em receber do que em dar, já entrou com o pé errado. Em qualquer aventura humana, só é feliz quem dá mais. Não posso esquecer o Padre José de Lima, meu exemplo e – porque não? – meu herói. Sempre disse que gostava de ser como ele.

Que outras atividades exerce para lá das suas responsabilidades nas suas paróquias?

Em virtude da minha paixão pela leitura, fundei, com alguns amigos, o “Clube de Leitura”, já lá vão seis anos. Reunimo-nos todas as semanas e aí falamos do livro que estamos a ler. É uma aventura muito bonita. Sou assistente da Comissão Diocesana Justiça e Paz, cuja missão é zelar, na Diocese, pela Doutrina Social da Igreja, um corpo de documentos, papais e não só, sobre o mundo, a política, a economia, o ambiente, a paz mundial, o bem comum, a solidariedade, etc. Sou membro fundador da ATIEM (Associação Teológica Ibérica para o Estudo da Moral), um organismo sedeado em Madrid, com cerca de 40 elementos, de entre os quais cinco portugueses, teólogos no âmbito da Moral. Desde 1995, faço parte da Comissão de Ética do Hospital do Santo Espírito de Angra. Membro, desde 2009, do Centro de Estudos do Pensamento Português, sediado na Universidade Católica, no Porto. Faço parte de várias associações humanitárias e, ultimamente, com alguns amigos, nasceu o “Clube Ethos”, um espaço de pensamento e diálogo sobre a questão ética, que há pouco começou.

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Concorda que esta civilização garantiu um elevado padrão legislativo sobre direitos humanos, porém o avanço tecnológico e a ganância pelo dinheiro interromperam esse desiderato?

As vinhetas de banda desenhada que mais gosto são as do Garfield. Numa dessas vinhetas ele aparece como herói: o “vingador da capa”. Entra então numa loja cheia de pássaros engaiolados. Abre-lhes as gaiolas e grita: “Estais livres! Estais livres!” Mas os pássaros, com medo do gato, recuam para o fundo das gaiolas. Então Garfield fecha as gaiolas e grita: “Estais seguros! Estais seguros!” Julgo que esta é uma metáfora do nosso tempo. Aliás, de todos os tempos, uma vez que a História é cíclica. A cena bíblica da libertação do povo hebreu do Egipto é também elucidativa: Moisés liberta o povo de uma terrível escravidão. O povo atravessa o Mar Vermelho e, livre, entra no deserto. Mas a liberdade não é gratuita: implica enfrentar desafios. E ao deparar-se com a fome e com a sede, com o frio e o calor do deserto, o povo volta-se contra Moisés e acusa-o de os ter feito sair do Egipto para morrerem no deserto. Tinham saudades da escravidão. Estamos num tempo semelhante. As grandes conquistas da nossa civilização, nomeadamente a liberdade, a igualdade, os direitos humanos, não são um dado adquirido. O medo é uma força bruta. E é por medo que os povos se fecham em nacionalismos exacerbados, com políticas que procuram a própria segurança, mesmo à custa dessas conquistas.

Por outro lado, esta geração já nasceu no berço dourado das grandes conquistas da nossa civilização. Não sabe o que é a pobreza nem a fome, não conheceu a guerra nem a violência, não faz ideia do que é viver numa ditadura desumana. Nascemos no meio de um bem-estar tecnológico e económico que nos leva a desvalorizar as conquistas que custaram o sangue de muitos heróis. Mas isso já foi há tanto tempo que pouco diz às gerações mais novas. Tenho algum receio do futuro, da regressão dos grandes valores civilizacionais e, pela História, sabemos bem para onde vamos se não cuidarmos desses valores como pedras preciosas.

A ganância das grandes multinacionais e dos Estados constitui um grave perigo para um valor extremamente importante e muitas vezes renegado: o bem comum universal, que a Doutrina Social da Igreja considera ser o bem supremo da política. Uma das consequências mais graves é a emergência ambiental. Estamos a destruir a nossa casa comum. Mesmo que parássemos agora todos os atentados contra o ambiente, o amanhã seria escuro. Mas não estamos sequer a travar, bem pelo contrário. Considero a questão ambiental como o mais importante dos desafios postos à humanidade. Os nossos filhos já não terão a qualidade de vida que vamos tendo por enquanto. Basta que, nos próximos anos, a temperatura geral da Terra aumente dois graus e a vida humana corre graves perigos de sobrevivência. E, no entanto, pressionados pelos “lobbies” económicos e financeiros, os Estados, sobretudo os mais poluidores, continuam a assobiar para o lado, como quem joga à bisca de três ao lado da morte, numa expressão feliz de Raul Brandão.

Um fenómeno recente é o enorme movimento de migrações em todo o mundo, especialmente de países pobres, em guerra ou em ditadura, para países ricos e livres, como a Europa e a América do Norte. As grandes massas de refugiados chegaram para ficar: é um novo paradigma civilizacional. E, aí, infelizmente, ninguém se entende.

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Tendo em conta o que acabou de escrever, como perspetiva e prospetiva o futuro regional, nacional, europeu e mundial?

História é a memória do futuro. Basta conhecermos o nosso passado e as peripécias da História humana para termos uma ideia, ainda que deficitária, do que pode ser o amanhã. O cenário que me mete mais medo é o de estarmos numa época de algum modo semelhante aos anos 20 e 30 do século passado. Também houve uma pandemia, também aconteceu um “crash” financeiro, também as populações, descontentes, se manifestavam ruidosamente, exigindo mudanças sociais e política extremas e começaram a surgir os nacionalismos, as xenofobias, os ódios imperiais. A humanidade desceu ao mais fundo com extremismos como o nazismo ou o estalinismo, a segunda Guerra e o Holocausto. Nada disso é impossível de voltar a acontecer. A memória histórica é curta e muitas vezes distorcida. Acresce que tudo isso ganha uma dimensão globalizante, devido à era da informação e das redes sociais, que funcionam como uma caixa-de-ressonância. Os fenómenos mais recentes apontam para uma bipolarização do saber e da informação. Cada um informa-se sobre aquilo que lhe interessa, as suas ideias, o seu partido, o seu grupo, a sua ideologia, ignorando o que se passa do outro lado da barricada. Tomemos como exemplo o caso dos Estados Unidos, com a sociedade profundamente dividida, espartilhada em duas fações incomunicáveis, onde o diálogo, palavra-chave nos anos 80 e 90, entrou num declínio moribundo.

A nossa Região, o nosso País, a Europa e o mundo só têm um futuro de paz se o diálogo e o respeito forem os fatores essenciais do progresso. Enquanto olharmos o outro como inimigo, como o adversário que me vem atingir a liberdade e o bem-estar, não tenhamos dúvidas de que o futuro não será nada risonho. Acredito na possibilidade de uma nova onda de políticos que entendam bem o papel da política e da função social da política. O Papa Francisco, na última encíclica que escreveu, a “Fratelli Tutti”, afirmava que, dos ideais da Revolução Francesa, deu-se muita importância à liberdade e à igualdade e esqueceu-se a fraternidade. É dessa fraternidade universal que o mundo precisa.

Qual entende ser o principal vetor do sentido da vida humana?

Quando o jovem rico se aproxima de Jesus e lhe pergunta o que fazer para ser feliz, Jesus diz-lhe para cumprir os mandamentos da lei. Mas ele já os cumpria. Então Jesus propõe-lhe um desafio bem maior: dá tudo. Uma das lições que podemos tirar deste episódio é o de que existem dois patamares de realização humana, quer pessoal quer social. O primeiro, o básico, o alicerce é a conquista da paz e da liberdade, no diálogo e na concórdia. O segundo é a conquista da felicidade, pessoal ou social e aí cada pessoa ou cada grupo poderá construir a sua própria felicidade. A religião e a fé fazem parte desse segundo patamar, patamar que não pode existir, como disse, sem os alicerces da liberdade e da paz.

Acho – e aceito perfeitamente que não concordem comigo – que o homem é um ser essencialmente religioso, mesmo considerando os mais ateus ou agnósticos. Religioso no sentido em que o sentido da sua vida não está apenas na sobrevivência pessoal ou da espécie, não se esgota na superficialidade da espuma dos dias. O homem não é, ao contrário do que afirmava Heidegger, um ser para a morte. Há uma transcendência inerente a cada ser humano. Isto vê-se na ciência, na cultura, na busca de Deus, no pensar-se a si mesmo, na consciência, na arte. Só se é feliz quando se deixa de sobreviver e se começa a viver plenamente. Só se é feliz quendo se é sábio, isto é, quando, dos conhecimentos que se adquire, da maturidade que o sofrimento dá, da busca da verdade e do bem, se consegue um sentido para a vida. No meu caso pessoal, a figura de Jesus é tudo isto.

As sociedades criaram vários deuses como o dinheiro, a vaidade, a opulência e a ostentação. Acredita que o Deus primordial é quem continua a ser o fundamento de esperança no mistério da criação e/ou evolução?

Se não acreditasse não seria padre. Mas vejamos, em primeiro lugar, uma coisa: muitas vezes, demasiadas vezes, as religiões foram fator de violência, injustiça e guerra. Nalguns lugares continuam a sê-lo. Na Bíblia, diz-se que Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança. Mas nós também criámos deuses à nossa imagem e semelhança. É humano julgar que Deus é parecido – ou concorda – connosco. Quando a religião é usada como fenómeno de grupo, quando a fé não é tratada como algo que irradia e ilumina mas como algo que se impõe, estamos a instrumentalizar a religião, a instrumentalizar Deus. Acredito que, na religião, a ética é mais importante do que a fé ou, pelo menos, brota imediatamente da fé. O mandamento supremo do cristianismo não é acreditar mas amar.

Dito isto, creio que a humanidade vive um pouco desorientada no meio do turbilhão de fenómenos que, a altíssima velocidade, vêm bombardeando as nossas civilizações. Disse há pouco que o homem é um ser essencialmente religioso. Santo Agostinho rezava: “Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Vós”. A “morte de Deus” anunciada por Nietzsche e vivida na prática dos homens a partir do século XIX, teve como consequência a aurora da era do vazio e, como sabemos, se a natureza tem horror ao vazio, o homem não escapa a esse medo. É desse vazio que nascem todos os deuses possíveis e imaginários, porque o homem traz consigo, intrínseca à sua própria essência, uma sede de plenitude que nada neste mundo pode saciar.

O ciclo de vida do bambu é interessante: depois de colocada a semente de bambu na terra ela demora vários anos até germinar fora da terra. Então ela cresce com uma rapidez impressionante, atingindo dezenas de metros em poucos meses, direita e esguia, forte como aço. Pergunta: porque é que levou tanto tempo a germinar? Porque, primeiro, cresceu para dentro, para dentro da terá, criando raízes fortes, entrelaçadas, profundas, para poderem suportar a altura da planta. Assim os homens: todo o progresso, todo o desenvolvimento desenfreado em todos os setores da vida, toda essa velocidade estonteante que as novas tecnologias nos trazem, todo o bem-estar e todas as conquistas humanas, todo o espaço sideral descoberto, tudo o que o homem consquistou até hoje de pouco servirá se a humanidade não chegar à conclusão de que a única coisa que interessa é que a vida tenha sentido. É aí que Deus entra.