A incansável perseverança artístico-cultural da Ilha Terceira

Paulo Lemos
#Chronicle

Qual o preço a pagar pela insularidade? Esta é uma pergunta com que todos os artistas açorianos se depararam nalgum ponto das suas vidas e/ou carreiras artísticas. O facto de estarmos deveras afastados das grandes urbes faz com que surjam dificuldades inerentes à criação, edição, produção e divulgação das artes criadas pelos nossos melhores artesãos culturais.

Contudo, aquela realidade que, tão aparentemente, se poderia tornar num empecilho acaba por ser moldada pelos açorianos de forma tão magnificente que, de maneira natural, materializa-se numa produção cultural inigualável. Acredito piamente que o facto de sermos ilhéus, ao longo de séculos, acabou por providenciar-nos certos e determinados traços socio-culturais que se refletem atualmente na inigualável força da produção da nossa arte. O misticismo e a força presente dos Açores, e seus orgulhosos habitantes, já foram descortinados em livros como “As Ilhas Desconhecidas”, de Raul Brandão, e até nesta nossa identidade, à causa de uma particular essência geográfica sócio-histórica, definida por Vitorino Nemésio como “açorianidade”.

Desta forma, a interpretação do conhecido provérbio popular de que “os Açores são oito ilhas e um parque de diversões” toma um diferente sentido. Ao contrário da crença do povo de que este referido parque de diversões se traduz meramente em atividades tauromáquicas, regadas ao sabor do vinho de cheiro, na verdade, o verdadeiro núcleo duro deste conhecimento popular encontra sua a essência na extensão dos afazeres artístico-culturais produzidos pelos terceirenses. Somos um povo que procura ir sempre mais além do seu próprio ser. E este “além” é o desbravar de um sonho. Ao contrário do que proferem os “Velhos do Restelo”, já conhecidos por acentuadas qualidades críticas e niilistas, este nosso sonho é uma aspiração realista, sempre com os pés bem assentes na terra. 

Existe neste nosso povo uma sede por arte e cultura, que se perpetua numa interminável busca pela nossa essência. E como se materializa esta procura do santo graal cultural? Pela incansável realização de eventos culturais que assistimos nos dias de hoje, mesmo em pleno período de uma pandemia mundial. Os nossos agentes culturais acabam por perpetuar a produção de eventos culturais, que ganham o seu corpo em espetáculos de teatro, feiras do livro, concertos, performances de dança, recitais de poesia, lançamentos de livros, festas eletrónicas alternativas, cinema, entre outros. A Ilha Terceira assiste semanalmente a uma incansável tentativa de perpetuação de uma constante arte na vida dos seus cidadãos e onde uma das suas maiores falhas é algo que nem a própria génese da arte poderá alguma vez controlar: a falta de tempo, aquele arqui-inimigo da humanidade cuja existência faz com que não possamos marcar presença em todos os eventos merecedores do nosso comparecimento.

Relativamente à minha experiência, posso comentar que, tal como muitos conterrâneos, emigrei durante muitos anos. Para além de ter experienciado a vida laboral nos EUA, trabalhei na República Checa e, entre outras peripécias, vivi também na América Latina (Brasil e Argentina) durante meia dezena de anos, antes de regressar este ano à nossa terra-mãe, onde tenho habitado até então. Dizem que o primeiro amor nunca se esquece e, deste modo, apesar de ter trabalhado em diferentes áreas, como a restauração, turismo, ensino, e até mesmo artes circenses, nunca deixei a minha amada cultura para trás. 

A arte foi sempre a minha fiel companheira neste desconhecido estrangeiro, independentemente da cidade onde me encontrava. Sempre que o tempo me permitiu, marquei presença nos diversos espetáculos artístico-culturais que cada lugar me proporcionou. E, dessa maneira, faço notar que o ecletismo é uma qualidade que nunca deve ser descurada. Assim sendo, o meu espectro cultural abrangeu desde exposições artísticas em Buenos Aires, passando por teatros anarquistas brasileiros, teknivais ilegais checos, indo até desfiles carnavalescos uruguaios, entre muitas outras desventuras. 

Tudo isso vivi e tudo isso experienciei. Mas entre nós que ninguém nos escuta, posso confidenciar-vos que a Ilha Terceira possui uma inigualável produção cultural, ao compará-la com outras metrópoles. Claro que o rácio de uma capital europeia, ou latina, sempre superará em quantidade a produção cultural açoriana, por uma questão de concentração de talentos: as grandes metrópoles materializam o chamamento das sereias aos marinheiros artísticos que têm aspirações. Contudo, escapando-me do state of art das importantes capitais mundiais, tive também a oportunidade de viver em várias pequenas cidades estrangeiras onde a densidade populacional atingia sensivelmente as cem mil pessoas. Em virtude disso, torna-se realizável o estabelecimento de um possível paralelismo na relação entre o número de habitantes de uma determinada cidade e a realização de espetáculos culturais. E aqui é onde reside um facto deveras curioso, pois muito dificilmente a proporção da criação cultural desses lugares pode equiparar-se à nossa Ilha Terceira.

Existe algo no nosso povo que se traduz nesta imensa e apaixonadamente criação artística, que atinge e abrange diferentes setores e classes sociais. Não é de todo a intenção desta crónica elencar uma extensa lista de eventos terceirenses, que devem ser passíveis de um reconhecimento regional e nacional, mas enfatizar a continuidade histórica de tais espetáculos, entidades e promotoras responsáveis pelos mesmos. Eventos como o Azores 2027, Angrajazz, Jazz na Rua, Festival de Teatro de Angra do Heroísmo, Festival de Cinema Cine Atlântico, Feira do Livro de Angra do Heroísmo, “Outono Vivo”, Sanjoaninas, Festas da Praia, Angra em Festa, Às Quartas Cinema é no Jardim, entre outros, permitem-nos abranger os diferentes quadrantes artísticos das distintas artes nacionais.

Para além destes, é de congratular a incansável produção artística independente de associações como a Oficina d’Angra, Instituto Açoriano da Cultura, Gê-Questa ou entidades estatais como a Direção Regional da Cultura, Câmara Municipal de Angra do Heroísmo e Câmara Municipal da Praia da Vitória. Salientamos, assim, que a presença constante de eventos pontuais, maioritariamente organizados por estas entidades públicas, no Centro Cultural de Angra do Heroísmo e Auditório do Ramo Grande, é um esforço que deve ser reconhecido. Relativamente ao papel das associações regionais, a Oficina d’Angra tem-nos brindado com uma assídua e constante realização de eventos culturais, com diversos reconhecidos artistas regionais e nacionais; para além disso, tem colaborado com a Gê Questa, organizando, assim, espetáculos em diferentes e particulares espaços, como o Forte de São Mateus. A importância socio-cultural destes eventos, sendo muitos deles musicais, não pode ser de todo descurada. Procurando compreender a importância da musicalidade das nossas vidas, escutamos assim as palavras de Schopenhauer, onde é defendido que “a música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende”. Tal afirmação não poderia acercar-se mais da realidade vigente. 

E, ao aproximarmo-nos do final deste texto, descortinamos a sabedoria de Saramago, que nos deu a conhecer que “é preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”. Com a maior das humildades, posso confessar-vos que foi precisamente isso que aconteceu com a minha pessoa. Este “sair da ilha”, para além de ter ocorrido sob a forma de uma deslocação geográfica, foi na verdade muito mais do que isso. Transfigurou-se numa viagem interna de introspeção, que me permitiu ver e reconhecer que o melhor que temos na cultura nacional reside aqui mesmo. Nesta nossa Ilha Terceira. Um bem-haja a todos os agentes responsáveis por esta incansável dedicação a este fulcral complemento do ser humano, a que chamamos arte. A todos vós, o meu mais sincero obrigado! Vemo-nos no próximo espetáculo!

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Paulo Lemos é um açoriano, amante das artes e da cultura. É mestre em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra e já trabalhou na Disney World Resort (EUA, Flórida), integrou a assessoria de imprensa no festival checo de música Mighty Sounds, foi parte integrante da indústria turística argentina, deu aulas de inglês no Brasil e, entre outras desventuras, realizou o seu Erasmus em Itália. Foi vocalista da banda punk hardcore açoriana Resposta Simples e participou noutros projetos musicais de fastcore, ska e punk rock. Organizou meia centena de eventos musicais nos Açores e continente português e, para além disso, é autor do primeiro livro sobre punk em Portugal, “Vida Suburbana” (Associação Burra de Milho, 2015). Atualmente exerce a profissão de programador informático.