Lembranças na Casa da Sra. Florinda

Miguel Sousa Azevedo
#Chronicle

Porto Martins. Fez por estes dias 120 anos, Francisco “Canhoto” concluía a construção da sua casa de família. Uma pequena habitação de três divisões: quarto com sótão, sala e cozinha com um forno grande, com capacidade de cozer para fora. Lá atrás, um curral de porco e um monte de pedra rolada onde a roupa ia corar. Ao lado ficava a “casinha”, paredes meias com faias densas, numa terra que ainda nem o era bem. As grossas paredes de 70 centímetros, unidas ao nível de horizonte com o mar, começavam a guardar a sua história.

Pedreiro de recursos firmados, o bisavô Francisco era mesmo canhoto, o que marcava a sua outra atividade, a de exímio tocador de viola, que exercia pelos terreiros de uma Terceira cheia de contrastes e influências. A sua viola era encordoada ao contrário, e as modas de então faziam-no merecer elogios, que recebia com uma modéstia excessiva. Parece que sempre foi assim.

Na casa em questão, a bisavó Maria deu à luz apenas à filha mais nova, Mariinha (Maria Alda), uma avó materna com mãos de fada, pele macia e riso firme. Já nasceu no novo século, ao contrário de Florinda, a tia avó que acompanhou a minha meninice, de que foi uma das personagens centrais. Era a única pessoa próxima nascida em mil e oitocentos, portanto no século XIX…e tantas vezes eu o disse no colégio e na escola.

Com efeito, naquela casa de música e luta de vida, entre pão e amor, equilibravam-se os dias com as parcas cores de uma ilha pouco lilás. O Porto Martins dos inícios do século 20 estava a anos luz do lugar de veraneio e amplas vivendas que se foi criando e logo descaracterizando. 

O então curato do Cabo da Praia era um caminho de terra, com canadas estreitas em espinha, onde as gentes viviam com dificuldades, salvo uma ou outra família endinheirada que por ali tivesse uns alqueires. E tendo valido ao lugar a filantropia do Visconde José Coelho Pamplona, ligado por laços de sangue aos “Canhotos”, que ao que sei o acompanharam na doença final, sem nada querer por compensação.

Um texto que verse família, raízes, lágrimas gordas de recordações e risos francos por graças de outrora, fecha um conjunto tão vasto de sentidos que as ideias se atropelam. 

Mas desde sempre me interroguei como viveria toda aquela gente na pequena casa onde depois passamos a visitar a Tia Florinda. No verão, a carrinha do colégio deixava-nos à conta dela, enquanto a restante miudagem ia para a Poça da Areia. Havia cheiros, gavetas, garrafas vazias de Old Spice e um fogão pequenino. Assim como umas cebolinhas em réstia, que ganhavam fulgor ao mínimo refogado, e que talvez fossem de uma categoria que já nem vale.

As décadas tinham voado e também me fazia espécie que os irmãos mais novos daquela casa nunca tivessem conhecido os mais velhos, emigrados para a América e alguns já falecidos. Isto em contas de rapaz pequeno, que cresceu com estes dados adquiridos, e com outros, que se calhar foram úteis na descoberta da passagem pelas emoções.

A casa da Tia Florinda ficou mesmo para ela. A filha mais nova, Mariinha, havia de enamorar-se de um bonito rapaz vindo do Porto, em férias de verão, filho do vizinho temporário da frente, o Professor Sousa Júnior, que era Médico e tinha sido Ministro. E que abalara do continente, regressando ao torrão natal, onde até se desviou da mais populosa Praia da Vitória para abrir uma venda no pequeno Porto Martins. Aqui, a sua sabedoria e causas próprias deixaram marcas.

O bonito rapaz viria a ser a metade de um amor do qual nasci, e Mariinha foi viver para o Porto e depois para a cidade, ficando então Florinda na pequena casa, de onde ajudou muita gente, pois os seus préstimos de curadora e mulher letrada não lhe deram marido ou filhos, mas sim a gratidão daquelas gentes, isoladas dentro da ilha e com escassas posses. 

Conta-se que um dia retirou habilidosamente um anzol que se enfiara na cara de um infeliz pescador, que só depois foi visto por um médico, na Praia, e que logo disse: “só a Florinda podia ter feito isto”. Fazia curativos, escrevia cartas para os familiares distantes, cujas respostas depois também lia. E, na volta do correio e da solidão, a pequena casa já albergava tanta coisa para contar.

Nunca percebi bem se os conhecimentos “de Florinda” – era assim que a minha avó dizia quando se referia a coisas da irmã seguinte – foram diretamente ampliados pelo convívio com o “Avozinho Doutor”, que era como a minha mãe e a minha tia se referiam ao já citado Sousa Júnior – que, e ia-me esquecendo, já cá estivera para lutar contra a Peste, numa missão humanitária tão comparável e díspar face à realidade sanitária que hoje vivemos –, mas certamente houve essa ligação. 

E depois sempre houve a música. Presente como um agrado que fazia parte das horas e das noites. Se, na cidade, era o Telefunken de válvulas a ditar as leis da onda média mundial, neste recanto tocava-se guitarra e viola como quando o patriarca aqui estava. E na senda dos acordes que ele ensinara e dera a dedilhar. Já bem depois das demandas de Sousa Júnior, também Nemésio passou pelo balcão da pequena casa, encantado pelas vozes e versos, que tentou decalcar. Parece que eram melhores os serões e as conversas que a musicalidade. Mas quem tivesse lá estado por uns minutos.

Há uma meia dúzia de anos, e já depois de recuperada e ampliada – se bem que mantendo todas as paredes originais – a pequena casa de família, sentei-me ao fim da tarde numa das banquetas da frente, na mesma varanda onde tanta música viajou e onde certamente se contaram coisas que o céu terá guardado, e eis que aqui passou a Maria João. Era a pessoa mais antiga da Ribeira Seca, ali junto ao Porto de São Fernando onde, fechada num luto já antigo, se tornou figura conhecida. Alta e esguia, queimada pelo sol da maresia. Cumprimentamo-nos na respeitosa forma de sempre e, passados uns minutos, via-a regressar com um volume debaixo do braço. Tinha ido e vindo num ápice, contando que estaria pelos 80 de idade. Um pão de bodo, embrulhado num pano branco imaculado, mostrou-se como o motivo do retorno: “Era para deixar este pãozinho, por alma da Sra. Florinda. Depois venho buscar o paninho”, disse-me de um fôlego. Eu, que afinal nem lhe conhecia a voz, fiquei com a minha perdida, de surpresa. A ternura daquela oferta, e o olhar meigo em que nunca tinha reparado, fizeram-me inchar de orgulho pela Tia Florinda e pelo bem que deve ter feito. Não haveria muito pão na casa da Maria João, nem panos brancos imaculados, o que me chega, ainda hoje, a arrepiar o corpo, em sinal de agradecimento. 

Nesta casa, fez-se o bem e houve felicidade. E, volta e meia, há um melro que aqui poisa, quase sempre ao final da manhã. Por essas horas, a Tia Florinda conversava com os seus passarinhos. Em troca de umas migalhas, saber que há hábitos que não se perderam conforta-me a alma. Mesmo se as faias densas deixaram há muito de fazer parte da paisagem…

None


Miguel Sousa Azevedo, 46 anos, terceirense de Angra do Heroísmo. Jornalista em funções de assessor de imprensa, é autor do blogue "Porto das Pipas", desde 2004. Colabora na imprensa regional, é comentador desportivo e vice presidente do Rádio Clube de Angra.