Neste reles ritmo

João Pedro Porto
#Chronicle


MANDA A COMÉDIA DA VIDA que interesse mais o ritmo do que qualquer outra coisa. O primeiro sinal de vida é uma batida, e depois interessa mantê-la. Eden nascera a horas, que é o primeiro elogio prático que se pode oferecer a alguém, e desde então fizera a mais acurada insistência em manter um acertado, bem calibrado, ritmo. E esse era veloz. Lampeiro o suficiente para dele saberem ter estado em lugares, sem lá ser visto; ter feito disertos discursos, sem ter sequer sido ouvido; ter aproximado gente, sem aquele toque que faz vinco na veste; ter consolado sem o peso do ramo sobre o ombro, sem que disso dependesse ver-lhe o tão curto rosto, o tão seco tronco, a tão fina passada. Eden era como uma meia estação, com as particularidades de um Outono ou de uma Primavera, inconstantes na variação, mas constantes na sua hora de chegada. E porque falar de uma meia estação é falar de todas – razão máxima para lhes fazerem tanto verso – aqui falaremos de uma, sem dar conta de qual, mas dizendo que chovia secamente, como é habitual em Marços e Outubros.

Chovia, portanto, secamente na doca da ilha, sobre as águas maiores, com toda a redundância. E alguém dizia de Eden por lá já ter passado, sem deixar pousar a garoa no espaldar, nem atirar um sequer olhar à linha mais longe, delgadamente apagada pelo zimbro azul. Outro dizia ter-lhe ouvido o assobio, não um simples silvo, mas uma curta melodia que agora trauteava como se lhe fosse uma memória vinda à vez, logo para ser perdida sob a vinda da seguinte. Alguém ainda apertava o peito, mantendo no silêncio que pedem os segredos mais doces e nectarinos, o beijo que Eden seguramente deixara num só sopro nos seus lábios, tentando virar-se contra o vento maior, vindo das águas maiores com a chuva mais seca, detendo-o de roubar esse tímido atrevimento. Alguém encontrara três perdidas moedas, porque tinha sido Eden a primeiro vê-las, rejeitando o desvio de as apanhar, por não querer perder uma sequer batida, e assim perder o ritmo. Do mesmo modo, não cultivava arrependimentos, nem lavrava a nostalgia, pois sabia ter de os colher numa safra tediosa e sazonal. Talvez por isso, alguns o chamassem de homem do futuro, ou aquele que vivia entre o presente de que não damos conta, e o porvir. 

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Estávamos em Março ou Outubro – já o dissemos –, num mês certo na sua forma de chover, quase como quem chora sem lágrimas. Um mês de soluços, plangores e vagidos, mas sobretudo de soluços, e eis que algo acontece – não importa dizer o quê – que dá soluço a todos os da doca da ilha. Proibidos pelo soluço de qualquer presteza nas sua vidas, é-lhes recomendado, a susto, que se moderem nos movimentos: que solfejem com vagar, que demorem o beijo e o toque; que não deixem as moedas por apanhar. E, reconhecendo na recomendação alguma validade, os da doca da ilha, tudo temperam. Temperar é ter temperança, alguém disse, e a vida continuou, ao ritmo de um manco.

Disto, Eden não se viu isento. Começou por um beijo mais demorado, apanhou três moedas, lançou a linha ao horizonte, e dali a nada, o que ainda lhe foi qualquer coisa de um bom bocado, brotou-se-lhe uma memória – tinha que ver com uma estação maior, pois era mais segura na sensação de eternidade, daquela mentira própria dos meses mais custosos. Logo, logo, aflorou-se-lhe um único arrependimento – tinha que ver com desvios tomados e com coisas evitadas. O coração saltou-lhe uma batida. E todos, sem qualquer excepção, viram-no ali ficar, assobiando uma longa melodia. E a chuva seca não parou de cair sobre as águas maiores.


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia


J
oão Pedro Porto nasceu nos Açores, em Abril de 1984. Tem, até à data, cinco romances publicados, O Rochedo que Chorou (Publiçor, 2011), O 2egundo M1nuto (Letras Lavadas, 2012), Porta Azul para Macau (Letras Lavadas, 2014), A Brecha (Quetzal, 2017), e Alienação (Letras Lavadas, 2020); três livros de contos, O Homem da Mansarda (Seixo Publishers, 2014), Fruta do Chão (Letras Lavadas, 2018) e Contos Bizarros (Letras Lavadas, 2019); e um livro de poesia, Pássaros de Poente (Letras Lavadas, 2020).