Raízes Insulares

Ana Vasconcelos Martins
#Chronicle

Há não muito tempo atrás deparei-me com um mapa-mundo que estava exposto num evento universitário em Inglaterra. O mapa estava repleto de alfinetes a marcar as origens das centenas de pessoas, de toda a parte, que preenchiam os corredores daquela feira estudantil. Quando reparei no sinal por cima do mapa a pedir que cada estudante identificasse a sua origem, agarrei num alfinete e, sem hesitação, espetei-o no meio do Atlântico, entre a América do Norte e a Europa, por cima de uns pontinhos que sabia representarem os Açores. Era o único alfinete no meio do oceano. Reconheço que senti orgulho no momento.

A identificação imediata com aquelas coordenadas poderá não ser fácil de compreender, tendo em conta que vivo longe dos Açores desde que tenho memória. Foi com dois anos de idade que saí com os meus pais da Terceira, onde nasci. Vivi a maior parte da minha vida em Lisboa, tendo também vivido nos Estados Unidos e, mais recentemente, em Inglaterra. Cresci com um sentimento cosmopolita, onde facilmente me senti em casa na maioria dos sítios, sem lhes pertencer completamente. Não tenho raízes em nenhum dos lugares onde vivi, ainda que sinta que todos se tenham enraizado em mim. Ainda assim, sempre que visito os Açores, o sentimento é puramente o de regresso às raízes. É uma sensação que sempre me intrigou.

Leio num artigo do New York Times, sobre a forte ligação da diáspora açoriana às suas origens, que ‘cerca de um milhão de norte-americanos nasceram ou descenderam dos Açores – quatro vezes a população atual destas ilhas’. São milhares os que regressam regularmente – bastantes regressam de vez. O mesmo não se dirá de outras partes do mundo desertadas pelas novas gerações.

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O que explica um apego tão visceral a uma terra que visito umas escassas semanas por ano, com a exceção de uma ou outra estadia mais longa? Pode ser o facto de aqui ter nascido, ou de ter família próxima com quem mantenho contacto. As raízes humanas reforçam a ligação à terra. A beleza das ilhas é avassaladora, a história é motivo de brio, o estilo de vida é tentador. Com certeza todos estes fatores ajudam a explicar o apego dos que se fizeram a outras terras. Eu não tenho uma explicação para este mistério, por mais que tenha refletido sobre o assunto ao longo dos anos. Mas talvez tenha uma modesta teoria: a insularidade fortalece a identidade.

Bem sei que vivemos na era da globalização e da conectividade instantânea, e que se teme o esbatimento das identidades culturais e nacionais. Mas é possível que ter origem numa ilha, com as suas fronteiras impostas pelo mar e não pelo homem, intensifique o sentimento de pertença e reforce a identidade dos que de lá provêm. Da mesma maneira que muitas vezes ouço britânicos a falar da Europa como uma entidade externa, é frequente ver açorianos referirem-se a Portugal como se dele não fossem parte. Normalmente diz-se que se ‘vai ao Continente’, ou que ‘a pequena está a estudar lá fora’, mas volta e meia ouve-se ‘lá’ em vez de ‘cá em Portugal’. Não é que se questione a inclusão nacional, que é óbvia, mas confirma-se a sensação de se estar num lugar à parte.


Suspeito que seja esta experiência unitária, insular, que gera esta identidade robusta com força gravítica sobre os açorianos espalhados pelo mundo.

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Ana Martins é Assistente de Investigação no Projeto "Europe's Stories" do Programa Dahrendorf, em Oxford, e é anfitriã do respetivo podcast. Tem também trabalhado como Gestora de Projetos na Universidade Católica Portuguesa (UCP). Fez o MPhil in Politics: Teoria Política na Universidade de Oxford (2018-2020). Enquanto bolseira do Europaeum (2018-2019), fez parte de um projeto interdisciplinar que conduzia investigação sobre perceções de participação democrática e pertença à UE. Previamente, estudou Direito e Ciência Política na UCP.