Rios de Fumo Negro – uma exposição de André Almeida e Sousa no Museu Carlos Machado

Vítor Teves
#Chronicle

Escrever qualquer texto é sempre escrever um reflexo de uma perceção estritamente pessoal, ainda que o desejo de imparcialidade esteja presente é a personalidade e escolha de quem escreve que sobressai na folha de papel. Afinal o que é um texto senão um olhar sobre objetos ou uma reflexão de um entendimento, de uma experiência? Um texto é sempre um texto que olha um e vários objetos sem deixar de ser, sempre e apenas, um simples olhar, um raio que incide sobre determinados aspetos dos objetos, sem fechar sobre si a totalidade desses mesmos objetos. Aliás, ninguém por mais dotado que seja, consegue fechar qualquer obra de Arte, ela é por natureza sempre aberta na medida em que o que vemos hoje outros amanhã verão de outra forma. Arte é ampliação, nunca cisão ou encerramento sobre si mesma.  

Dizer tudo isto, algo que deverá ser muito óbvio, é anunciar que este pequeno texto não procura ser mais do que aquilo que de facto é: um olhar que propõe alguns pontos de leitura. Serve esta introdução para dar conhecimento de uma exposição que decorre atualmente no Museu Carlos Machado com o título "As pegadas são pontes", da autoria do artista açoriano André Almeida e Sousa, nascido em S. Miguel, em 1974. 

André Almeida e Sousa – Sem título, 2015, 2016, acrílico sobre madeira, 23 x 41cm.
André Almeida e Sousa – Sem título, 2015, 2016, acrílico sobre madeira, 23 x 41cm.


Para quem, como eu, segue de perto os desenvolvimentos da arte contemporânea é sempre agradável descobrir, quase por acaso, um novo e bom artista, descoberta esta que se deve ao meu regresso à ilha, e assim sendo, esta é a primeira exposição em que contacto com a obra de André Almeida e Sousa. Sobre essa descoberta, não poderia deixar de elogiar vivamente o seu trabalho pela qualidade e pertinência. Há, como podem perceber, uma adesão incontestável, entusiasmada à sua obra.

Antes de mais nada, convém determo-nos no próprio título da exposição – As pegadas são pontes, um “aforismo, um fragmento do seu pensamento”, diz-nos João Silvério, curador da exposição. Nesse título importa dar importância às duas palavras: “Pegadas” e “Pontes”, nelas encontramos o sentido geral de todas as obras. “Pegadas” implica a noção de marca e a ausência deliberada de um corpo que já não está presente. Esta ausência pode ser encontrada diretamente em várias obras, como por exemplo, a forma ovalada que revela a ausência de um corpo ou a névoa criada por essas próprias formas. Há assim a indefinição do que é apresentado, imagens que “perderam” o seu corpo principal, imagens que funcionam como memória de algum corpo ou imagem. Ao mesmo tempo, há o recurso subtil a evocações da História da Pintura: Philip Guston, Francis Bacon, Frank Auerbach, Turner, Luc Tuymans, Pollock, Pedro Casqueiro, referências essas que aqui não podemos esmiuçar, apenas enunciar. 

Por outro lado, a palavra “pontes” aponta para a condição de algo que está entre duas margens, poderíamos dizer que estamos perante trabalhos que estão entre a figuração e a abstração, entre o concreto e o indefinível. São, por seu lado, as mesmas pontes que prosperam na série Flipper Tsunami, um dilúvio de água e fumo preto, uma metáfora para os dias que correm.

A exposição, dividida em duas salas do Núcleo de Arte Sacra, apresenta caraterísticas distintas nos dois espaços e é importante referir essas diferenças. Numa dessas salas, a primeira obra a que o espectador tem acesso, a que dá as boas vindas ao espectador que sobe as escadas, é uma pintura-objeto, ou seja, uma pintura que joga com a representação e a fisicalidade da obra. A obra em causa representa fumo a sair de um cigarro, melhor dizendo, apresenta um jogo entre representação de uma mancha de fumo branco e um pedaço físico de madeira pintada, o que evoca um cigarro real.

Receber os espectadores sob o signo do fumo implica que o espectador encontrar-se-á perante imagens pouco nítidas, imagens que apelam à memória e conhecimento do espectador, imagens que criam, pela sua natureza, confusão, indefinição. Entramos assim num jogo entre revelação e ocultação, entre ausência e presença, entre descoberta e esquecimento. Esta obra – Sem título, 2015 – faz a separação entre as duas salas, uma separação entre, digamos nós, a Sala da dialética – a das “pontes” – e a Sala da névoa, da impressão, das “pegadas”. Observar esta obra é recordarmos uma das mais icónicas figuras pintadas por Philip Guston: a representação de uma mão que fuma um cigarro, a mesma mão que aparece noutra pintura de André Almeida e Sousa.

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A primeira sala, a que chamamos de “sala da dialéctica”, corresponde a um jogo de oposições, quer de materiais, quer de linguagem. Numa primeira abordagem convém referir dois aspetos materiais que sobressaem nesta sala: a predominância da tela de pequenas dimensões e o uso do papel que, por vezes, pelo recurso à série, atinge enormes dimensões. Encontrar esses dois aspetos numa galeria em S. Miguel é já por si uma lufada de ar fresco na medida em que quebra com aquilo que se tornou demasiado espectável: telas de grandes dimensões, como se a ideia de Arte tivesse que estar sujeita a padrões de dimensão física, e o exclusivo uso da tela e, simultaneamente, o desprezo por tudo que seja feito em papel. Esta exposição nega, assim, no imediato, essa visão conservadora insular ao alterar os padrões habituais de gosto.

Nessa primeira sala rectangular, a de frente para as escadas, vamos encontrar de um lado (à esquerda de quem entra) pequenos formatos sobre tela, sendo que nelas o jogo figurativo é, na sua maioria, uma forte presença – silhuetas de mulheres, pormenores de paisagens e figuras a ler. Por sua vez, o lado oposto (à direita de quem entra), encontramos três enormes séries em papel, as séries criadas entre 2016 e 2018, a chamada Flipper Tsunami, são estas as mais extraordinárias peças de toda a exposição. Nelas podemos entrar num jogo de distância e proximidade: longe são obras totalmente abstractas e ao perto são trabalhos parcialmente figurativos, desenhos herdeiros da linguagem da Banda Desenhada e do Cartoon. 

Nestas três séries, Flipper Tsunami, onde sobressai o elemento água e diversos fragmentos, o uso quase monocromático da cor – preto, castanhos, cremes – e o emaranhado das diversas imagens/fragmentos de desenho provocam no observador uma evocação, quando vistas ao longe lembram obras como Número 31 de Pollock. Mesmo que não haja nessas obras qualquer proximidade gratuita com o pintor americano. Ao perto todo o emaranhado abstrato transforma-se em fragmentos concretos, reconhecíveis: nuvens pretas (fumo?), esqueletos, cascatas e rios de água, pequenas ilhas, carros, blocos e muros, rostos e caras pouco definidas, fantasmas, explosões, esfinges, pequenas paisagens, caveiras, silhuetas várias, formas ovaladas/circulares, colunas, pequenos robots, formas indefinidas, etc. O inventário não termina aqui. Importa referir que uma das obras da série Flipper Tsunami, a que utiliza largos vazios do papel, parece evocar, pela sua natureza plástica, alguma da pintura e biombos do Japão; e de igual modo, Piranesi e Escher podem ser convocados como memória primeira para os outros exemplares desta extraordinária série sobre papel.

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Na outra sala, a névoa e a pintura-objeto são uma constante. Recebe-nos uma obra em tons terra escuro, uma pintura abstrata que parece evocar os blocos e muros das obras da outra sala e, ao mesmo tempo, evocar muito subtilmente algumas construções e empilhamentos de Philip Guston. A partir dessa obra há um deslocar dessas mesmas formas para peças independentes cujo resultado é a criação de enormes painéis com formas ovaladas ou semiquadrangulares de difícil definição. Aqui, nestas obras, o elemento indefinição é a palavra de ordem, sentimos que conhecemos essas formas e ao mesmo tempo estamos perante formas desconhecidas, um jogo que revela e esconde, uma intermitência que nos deixa sempre na dúvida sobre o que estamos a ver realmente.  

Nesta sala as pintura-objetos são uma presença forte. Uma dobra-se sobre si mesma, criando um triângulo que aponta para o chão, feita em tons cinzentos, o mesmo cinzento usado tantas vezes por Gerhard Richter. Nela as suas marcas parecem evocar um muro, um muro que se dobra sobre si mesmo. Dado o caráter “construtivo” das diversas representações e pormenores, não é de estranhar esse salto da representação pura para a pintura-objeto, há uma clara continuação das preocupações do artista, do jogo entre objeto e pintura/representação. Ao lado desta peça há uma outra, uma das mais impressionantes pinturas-objetos presentes na exposição: um quase diptíco ovalado revelando, simultaneamente, simetria e assimetria. É uma obra abstrata, uma forma dada ao espectador pela mão do pintor e como tal não há uma leitura fechada sobre o seu corpo.

Esta é a primeira exposição individual de André Almeida e Sousa no Museu Carlos Machado e é, juntamente com a exposição de Ana Hatherly no Arquipélago – Centro de Arte Contemporânea, a melhor exposição que podemos, de momento, encontrar na ilha de S. Miguel. Antes de me ir embora, resta desejar que uma dessas peças, sobretudo da série Flipper Tsunami, venha um dia encontrar um espaço digno num merecido museu regional, sobretudo ao espaço a que pertence: Arquipélago. André Almeida e Sousa é, sem dúvida, um artista açoriano a fixar e a valorizar. 

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Vítor Teves nasceu em Ponta Delgada, em 1983. É licenciado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestrando em Estudos Culturais e Interartes na mesma faculdade. Publicou poemas em diferentes revistas e conta com três livros: Dentes Tortos (2017; edição de autor); Cabra Bem Cabra (2018) e Lamarim (2019). Entre 2019 e 2020, foi um dos editores da Enfermaria 6 e um dos responsáveis pela publicação da antologia Terceira Margem (2019). Além de escrever poesia, desenha e pinta.