Sobre a palatalização da vogal [u] em alguns falares açorianos

Victor Rui Dores
#Chronicle

No âmbito mais vasto de um estudo que, nas últimas três décadas, venho realizando sobre particularidades fonéticas, morfológicas e sintácticas dos falares açorianos, proponho-me aqui tecer algumas considerações sobre a palatalização da vogal [u] – sua origem e pronúncia [ü] – que consiste no aperto dos orbiculares labiais e que constitui traço identificador da pronúncia da ilha de São Miguel, mas também observado na ilha do Corvo e em algumas localidades da ilha do Pico.   

Antes de mais, convém não perder de vista os seguintes pressupostos: os povoadores, vindos do norte, do centro e do sul de Portugal, ao fixarem-se em diferentes ilhas, deram origem a diferentes sotaques; as pronúncias dos Açores variam não só de ilha para ilha, como também, dentro de cada ilha, de freguesia para freguesia e de lugar para lugar. Daí a diversidade de variantes dialectais, sendo que em todas as ilhas açorianas há um traço comum: a preservação da estrutura arcaica. E isto porque os Açores constituíram, ao longo dos séculos, território (ultra)periférico relativamente ao continente português, à Europa e às Américas. Este fechamento das ilhas, acompanhado de cinco séculos de contacto permanente com o mar e de isolamento físico, a que se juntou uma religiosidade gerada no terror sagrado de sismos, vulcões e tempestades, foram factores determinantes no sentido de, nos Açores, se armazenar e manter a expressão portuguesa mais pura, mais autêntica e mais genuína.

Com efeito, muita da linguagem popular açoriana é um exemplo da expressão arcaica, quer nos termos utilizados, quer na fonia dominante. Resultado: não é difícil encontrar nessa linguagem palavras e expressões que estão muito próximas da escrita dos nossos autores de Quinhentos. Conheço uma idosa da ilha Graciosa que ainda hoje diz tôdolos e tôdolas, em vez de todos e todas, à boa maneira das crónicas de Fernão Lopes.

Alguns linguistas, antropólogos e etnógrafos caíram na tentação do caminho mais fácil e desataram a escrever que a pronúncia do referido [ü] resultava da passagem de supostos bretões franceses pela ilha de São Miguel durante e após o processo de povoamento das ilhas. A justificação desta teoria prende-se com a existência de um lugar chamado Bretanha, situado no lado noroeste daquela ilha.

Com efeito, já nos finais do século XVI, Gaspar Fructuoso, na sua obra Saudades da Terra, referia-se à Bretanha nos seguintes termos:
“… Logo corre alta rocha por espaço de uma légua até o logar da Bretanha, situado em uma ponta grossa e romba da terra, que faz a enseada atraz dita… Chama-se este logar da Bretanha (segundo alguns) porque é terra alta e grossa, a que chamavam os antigos alta Bretanha; outros dizem que por morar ali antigamente e ter suas terras e fazendas um bretão… Além do logar da Bretanha… está a grota de João Bom, que ali vivia e tinha suas terras…” (1).

Mais de um século depois, o padre António Cordeiro (seguindo, aliás, de perto a narração de Gaspar Fructuoso) dá conta da Bretanha, no seu livro História Insulana, deste modo:
“Passada mais huma legoa, & sobre huma ponta grossa da bahia está o Lugar chamado Bretanha, (ou por assim chamarem os antigos a qualquer terra alta; ou por ali ter sua fazenda hum Bretão) & tem Parochia de N. Senhora da Ajuda, com Vigário, & sessenta & oyto vizinhos…” (2).

Durante séculos esta opinião prevaleceu como certa. E, por este diapasão, alinharam diversos autores, incluindo Teófilo Braga (3), o insuspeito Leite de Vasconcellos, que, após efectuar, em 1924, uma viagem apressada a algumas ilhas dos Açores, escreveria uma série de imprecisões, se não mesmo um périplo de disparates sobre as mesmas (4), Almeida Pavão (5) e Lindley Cintra (6). Este último fala sempre em termos de dialectos açorianos quando, na minha opinião, será mais correcto utilizar-se variantes dialectais açorianas. Mas passemos à frente.

Em 1949, Francis Millet Rogers, professor norte-americano da Universidade de Harvard, questionou o assunto acima referido em estudo publicado (7), lembrando que, etimologicamente, a palavra Bretanha significa “a high piece of land”, pondo em dúvida uma pretensa relação Bretanha/bretões na ilha de São Miguel.

Diferente é a perspectiva do antropólogo Francisco de Arruda Furtado que nesta matéria, opina sobre uma suposta influência céltica:
    “…A Bretanha é uma das partes da França que maiores vestígios celtas apresenta, ethnologicos e anthropologicos; a denominação de Bretanha dada a uma das povoações da ilha cujo povo estudamos, é assaz problemática. Já vimos que esta povoação tem particularidades notáveis…; esta pronúncia franceza estende-se por toda a ilha ainda que em menor grau e faz-se sentir especialmente no u… (8).

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Em livro publicado uma década depois, J.V. Paula Nogueira reintroduz o argumento linguístico do [ü], nos seguintes termos:
“Ainda a Bretanha se destaca do resto da ilha pela pronúncia do u, que é puramente francez, assim como o dithóngo oi ali se modifica para o eu dos francezes, pronunciando-se, por exemplo, bois como um francez pronunciaria boeuch… Dahi a pretensão que teem os micaelenses de que a sua Bretanha foi colonisada por franceses bretões, com o que também parece estar de acordo o nome francez de Jean Bom, que designa uma pequena bahia perto da povoação da Bretanha” (9).

Opinião contrária manifesta, em 1935, o etnógrafo e etnólogo terceirense Luís da Silva Ribeiro, pois pronuncia-se firmemente contra possíveis influências célticas e francesas na ilha de São Miguel:
 “São tão fortes e estreitos os laços que nos prendem a Portugal, estamos por tal modo integrados na nacionalidade portuguesa, que difícil será encontrar radicada na vida e no espírito popular das ilhas coisa que de lá não tenha vindo” (10).

Um ano depois, Hugo Rocha publicou uma série de impressões antropológicas e linguísticas marcadas pela subjectividade:
 “O nome, certas palavras usadas pelo povo, o tipo dos habitantes, sobretudo, denunciam a origem francesa da Bretanha… De positivo, de exacto, abunda, na Bretanha, o tipo loiro, marca presumível da fixação, ali, de colonos bretões, e o vocabulário local exibe termos que denotam, claramente, a origem francesa” (11).

Estas e outras opiniões valorativas e pseudo-científicas ditaram, durante muito tempo, verdades intocáveis. E no entanto, já em 1921, F.S. de Lacerda Machado (que mais tarde viria a ser general) veicula um argumento de grande peso contra esta alegada influência francesa na ilha de São Miguel:
“… Mas quando mesmo aquela povoação (Bretanha) tivesse origem no estabelecimento de um grupo de bretões franceses, que valor teria, etnográfica e antropologicamente, esse minúsculo factor diluído na população duma ilha de 120.000 habitantes?...” (12).

Estes argumentos têm passado completamente ao lado da atenção de distintos linguistas açorianos, com meritório trabalho de campo efectuado, como, por exemplo, João Saramago (13) e Maria Clara Rolão Bernardo (14).

Ora, é precisamente partir dos argumentos acima mencionados que aqui me disponho a avançar com uma diferente perspectiva relativamente à origem do mencionado [ü].

Mesmo que tivesse existido uma grande colónia de franceses na Bretanha (e não há documentos que o provem), isso nunca seria motivo para que a pronúncia do dito [ü] se estendesse a toda a ilha de São Miguel, a maior do arquipélago dos Açores, com 747 Km2 de superfície.

De resto a palatalização da vogal [u], ou seja, a pronúncia em [ü], nunca foi exclusivo de São Miguel. Posso comprovar, através de muitas gravações que tenho vindo a efectuar junto de falantes das nove ilhas açorianas, que o dito [ü] é também utilizado nas ilhas do Corvo e do Pico, sendo ainda observado na ilha da Madeira.

E é este o cerne da questão: o referido [ü] é também pronunciado em certas regiões da Beira Baixa, Alentejo e Algarve, com especial incidência em Castelo de Vide, distrito de Portalegre, no Alto Alentejo.

Por isso mesmo houve quem, apressadamente, defendesse a ideia de que tudo teria começado com a política de Pina Manique, que, em 1787, ao pôr em prática o seu projecto de repovoar o Alentejo para desenvolvimento da agricultura nacional, fez com que algumas dezenas de famílias micaelenses (mas também gentes de outras ilhas) se tivessem fixado em terras alentejanas.

Partindo deste facto histórico, alguns estudiosos avançaram com a peregrina teoria de que os micaelenses teriam levado a sua pronúncia para Castelo de Vide e que ali teriam criado uma nova comunidade linguística. Trata-se, na minha opinião, de uma clamorosa falsidade. Pergunto: e as pessoas que já lá estavam (e que eram de resto, em muito maior número) foram de um dia para o outro, “absorvidas” pelo sotaque micaelense? Como explicar que o sotaque micaelense tenha “abafado” toda uma comunidade linguística alentejana que já lá existia há séculos?

Tenho a convicta opinião de que o mencionado [ü] tem a sua origem no português arcaico e veio do continente português para estas ilhas atlânticas e não o contrário. Ou seja, esta vogal [u] já chegou, no século XV, a São Miguel e a outras ilhas em [ü], vinda de terras alentejanas e algarvias. De resto a mudança de [u] para [ü] remete-nos para um fenómeno que tem a ver com a evolução fonética da língua, tal como o [ü] francês é, em si próprio, resultado do desenvolvimento normal do latim.

Continua a ter muito que se lhe diga o “faelhar açüriano” da ilha de São Miguel…




Bibliografia

  1. FRUCTUOSO, Gaspar, Saudades da Terra, Livro II, 2ª ed,. Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1978.
  2. CORDEIRO, António, História Insulana, Capítulo VII, SREC, Angra do Heroísmo, 1981.
  3. BRAGA, Teophilo (1869), Cantos Populares do Archipelago dos Açores, Porto, Tip. da Livraria Nacional; reedição fac-similada da 1ª ed., Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1982.
  4. VASCONCELLOS, José Leite, Notas sobre o dialecto açoreano, Revista Lusitana, I, Porto, 1936.
  5. PAVÂO, J. Almeida, Aspectos populares micaelenses no povoamento e nalinguagem, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta delgada, 1977.
  6. CINTRA, Luís F. Lindley, Estudos de Dialectologia Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1983.
  7. Insular Portuguese Pronnunciation: Alleged Breton Influence, in Romance Philology, vol. II, nº 4, Harvard University, 1949.
  8. Materiaes para o estudo anthropologico dos povos açorianos – observaçõessobre o povo michaelense, pág. 75, Ponta Delgada, 1884.
  9. As ilhas de S. Miguel e Terceira, págs. 71-72, Lisboa, 1894.
  10. A pretendida influência nórdica no povo micaelense, jornal “Correio dos Açores”        (17 de Fevereiro de 1935).
  11. Primavera nas Ilhas – Crónicas dos Açores e da Madeira, págs 38-43, Angra do Heroísmo, 1936.
  12. MACHADO, F. S. de Lacerda, A étnogenia micaelense(brochura de 35 páginas impressa na Universidade de Coimbra), 1921.
  13. SARAMAGO, João, Le parler de l´île de CorvoAçores,Grenoble, Université Stendhal, Grenoble III, Centre de Dialectologie; Lisboa, INIC, Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, 1992.    
  14. BERNARDO, Maria Clara Rolão / MONTENEGRO, Helena Mateus, O falarmicaelense– Fonética e Léxico, João Azevedo Editor, Lda., 2003.

bem como

Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores – Vol. 1 - A Criação de Gado, Manuela Barros Ferreira, João Saramago, Luísa Segura e Gabriela Vitorino, Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, Direcção Regional da Cultura, Açores, Lisboa/Angra do Heroísmo, 2001.

e ainda

BARCELOS, Dicionário de Falares Açorianos, Vocabulário regional de todas as ilhas (Almedina, Coimbra, 2008)



*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia