Surf em ilhas atlânticas, sinais dos tempos

Carlos Leal
#Chronicle

Quando falamos de surf, falamos concretamente do ato de deslizar numa onda. Pode-se “surfar” com ou sem prancha, em pé, ou de muitas outras formas. Podemos considerá-lo apenas como uma mera modalidade recreativa ou desportiva, o designado freesurf, individual, livre, ou incluído em eventos e competições. Numa abordagem mais ampla, o surf abarca um conjunto de modalidades das ondas: surf, bodyboard, windsurf, kitesurf, standup paddle, kneeboard ou bodysurf

Há tradicionalmente uma dicotomia entre uma abordagem desportiva e competitiva, mais comum, e outra mais profunda, holística, em que o surf é visto filosoficamente como um modo de vida, onde a busca pela perfeição das ondas equipara-se também a uma busca espiritual dentro do próprio praticante, em que cada onda tem também algo a revelar-lhe e a ensinar-lhe.

A prática do surf depende de fatores como as ondulações, o vento e as marés. Os Açores, ilhas situadas em pleno Atlântico Norte, estão naturalmente expostos durante a maior parte do ano a ondulações ou swells de tempestades e frentes próximas, ou às raras e muito apreciadas “inchas” ou “marés de agosto”. Estas ondulações são provenientes de tempestades muito distantes, próximas ao pólo sul, e têm a particularidade de atingir as costas sul das ilhas, muitas vezes sem qualquer vento, sendo vistas como “ondas perfeitas”. Normalmente, o "surfista" aprecia ondas sem vento ou com pouco vento contrário à onda, o “offshore”, que torna a onda mais lisa e fácil de navegar, ao contrário dos ventos a favor da onda, “onshore” que a deixam muito partida e com muitos saltos, dificultando a fruição pelo "surfista" ou rider.

Os Açores são, para além de um refúgio da Natureza e de paisagens de cortar a respiração, um santuário do surf no seu sentido mais lato, com ondas de grande qualidade em todo o arquipélago. As ondas e praias de São Miguel são as mais mediáticas, porém também há muitos praticantes nas ondes de lajes e baías da ilha Terceira e das fajãs de São Jorge. Há ondas mais mediatizadas e outras disponíveis para o explorador “à moda antiga”, que as descobre sem recurso a grandes referências.

Saída de água num “rolo” de uma fajã paradisíaca, em fim de tarde, na ilha de São Jorge. 
Fotografia: Vera Andrade
Saída de água num “rolo” de uma fajã paradisíaca, em fim de tarde, na ilha de São Jorge.
Fotografia: Vera Andrade

Ao falar de surf nos Açores temos de referir um pouco da sua história, condicionada pela lente deste narrador. Alguns dos pioneiros na ilha Terceira, e certamente também nos Açores, surgem por influência de "surfistas" americanos da Base das Lajes, nos anos 70, falo de Carlos “perna” Gouveia, José Labrego ou Francisco “Martelada” Martins. Quando me iniciei no bodyboard, em 1992, há quase três décadas, destacavam-se "surfistas" da segunda geração como o “Arquiteto” João Luís, mas também os irmãos Freitas e o José Lúcio Sousa, não só mas principalmente pela coragem que demonstravam ao "surfarem" ondas grandes, com risco de vida e quase sempre em fundos pedra basáltica. Fui inspirado no bodyboard por nomes como Carlos Moura, Filipe Lourenço, Sérgio Alves, Bernardo Balseiro e Pedro Freitas. Nos anos 90, não se houvia falar em revistas, filmes ou campeonatos de surf, e as ondas normalmente tinham poucas pessoas na água. O material e as referências eram escassos e basicamente todos eram autodidatas. Não se imaginava também que tantas ondas estariam em risco poucos anos mais tarde. 

Hoje em dia, o surf é essencialmente visto como um desporto competitivo, aliado a uma enorme indústria que conta com inúmeras marcas comerciais. O praticante pode ser ensinado numa escola, pode escolher e adquirir facilmente o seu material, pode saber como estão as ondas num momento específico, na praia desejada, sem ter de as procurar, como se fazia antigamente. A tecnologia científica de previsão de ondas também evoluiu muito, pelo que hoje é possível fazer uma aposta sobre como estará o mar dentro de quase uma semana e planear rapidamente uma viagem de freesurf com um amigo ou uma reportagem fotográfica comercial de uma equipa patrocinada por uma determinada marca. 

Nos Açores, o surf revela-se com um enorme potencial (eco)turístico, aliado a muitas outras atividades de contacto com a natureza, desde que em respeito pelas capacidades de carga e especificidades de cada local, trilho, miradouro ou onda. O selo turístico tem de ter um “eco” não só no nome, mas também na formação profissional e fiscalização das agências e atividades turísticas, de modo a manter-se e cuidar-se da “galinha dos ovos d’ouro”, não só por hoje, mas também para o futuro. Há também, inequivocamente, um potencial de educação ambiental e científica, visível por exemplo na multiplicidade de ações sobre biodiversidade marinha e costeira ou sobre o impacto do lixo marinho e das alterações climáticas nas nossas praias e costas. O contacto com o surf, tal como com espécies marinhas, como os cetáceos, também pode ser terapêutico para crianças e jovens com necessidades especiais, pela felicidade e momentos místicos de contacto com a Natureza que oferece.

Autor numa onda pouco explorada na Costa Norte da Ilha Terceira, 2012. 
Fotografia: Paulo Melo
Autor numa onda pouco explorada na Costa Norte da Ilha Terceira, 2012.
Fotografia: Paulo Melo

Uma das mensagens que aliam a conservação da natureza e o surf é a importância de se manter as condições das orlas costeiras e ondas o mais próximo possível do seu estado natural, pela proteção efetiva que oferecem. Recorrentemente, temos assistido à invasão do mar, com enormes custos para as populações e autoridades nos adventos, cada vez mais frequentes, de fenómenos extremos como tempestades e furacões. As ilhas mais desenvolvidas e populosas sofrem uma grande pressão causada pela urbanização e consequente há uma maior necessidade de proteção costeira. Destacam-se, pela negativa, os casos das ondas do Terreiro de São Mateus, na Terceira, e de Rabo de Peixe, em São Miguel. Estas foram descaracterizadas e parcial ou totalmente destruídas. Pela positiva, referência imediata ao caso da onda de Santa Catarina, na Praia da Vitória, Terceira, que é atualmente referenciada pela comunidade de surf e bodyboard como uma onda de classe mundial e um “case study” de sucesso de conservação. 

Ao longo dos anos têm sido feitos esforços pelo Turismo dos Açores, pelas Associações de surf locais e regionais e pelos privados, como os proprietários de lojas e escolas de surf, no sentido de dinamizar eventos de sensibilização ou de esclarecimento, mas também a economia, pelos diversos eventos desportivos e competitivos à escala local, regional, nacional e internacional.

A mensagem que se tenta atualmente passar aos governantes e ao público em geral é que as ondas são importantes ativos económicos, geradores de recursos e receitas, inclusivamente em época baixa. O surf é um desporto, mas também é um promotor da educação ambiental, em contacto direto com a natureza. Para que o seja, as ondas têm de ser protegidas e valorizadas para integrarem a eco oferta turística, desportiva, ambiental e cultural do arquipélago. Contudo, tal como noutros setores ecoturísticos, como a observação de cetáceos ou os trilhos, as capacidades de carga nem sempre são acauteladas, por um lado perdendo-se alguma qualidade na fruição, mas ganhando-se mediática e comercialmente por outro lado. Há um equilíbrio que é desejável entre ter mais pessoas dentro de água, que valorizem e ajudem a passar a mensagem da importância da natureza e das suas ameaças sérias e globais, e ao mesmo tempo manter as condições de segurança e a qualidade em cada “surfada”. Tal como no turismo, desejamos um ecoturismo e não um turismo de massas. Provavelmente, a maior parte da comunidade de surf nos Açores defende também esta premissa. 

A conservação das ondas requer, acima de tudo, união, liderança e um diálogo atempado rumo à consecução dos interesses da comunidade de surf e dos governantes. Tive a honra de integrar como Presidente da Associação de Surf da Terceira, de 2008 a 2011, a equipa que liderou o processo de comunicação rumo à despoluição e requalificação física da envolvente à onda de Santa Catarina. Esta onda já recebeu, em 2011, um campeonato nacional e mundial de bodyboard, revelando todo o seu potencial à esfera política e económica e, dez anos depois, em outubro passado, recebeu novamente o nacional. Para além destes eventos, centenas de "surfistas" e "bodyboarders" têm-na visitado ao longo das últimas duas décadas, com o privilégio de sentir a sua magia e a sua energia brutal, pois a onda, felizmente, ainda quebra hoje como há milhões de anos. Hoje, Santa Catarina está apetrechada com instalações de apoio aos seus usuários, fruto de uma boa e, acima de tudo, atempada comunicação entre a Associação de Surf local, o município e as demais autoridades. Acredito ser este o caminho para todas as ondas nos Açores, se o foco for a sustentabilidade a longo prazo ao invés de lucros de curto-prazo. Se o trabalho for bem feito, temos todas as condições neste arquipélago para preservarmos as ondas, e termos surf e "surfistas" de qualidade, pessoas que as amam e protegem e que, em troca, como costumamos dizer na gíria, nelas possam sempre “lavar bem as suas almas”.

Autor na onda do Porto Martins, ilha Terceira num domingo solitário, em ano pandémico. 
Fotografia: Marco Soveta
Autor na onda do Porto Martins, ilha Terceira num domingo solitário, em ano pandémico.
Fotografia: Marco Soveta


António Carlos Leal, natural de Angra do Heroísmo, com 41 anos de idade e pai de dois filhos, é licenciado em Biologia e mestrado em Educação Ambiental, pela Universidade dos Açores. Segue, desde 2004, uma carreira como educador informal para o ambiente e divulgação de ciência, estando atualmente ao serviço do Observatório do Ambiente dos Açores – Centro de Ciência de Angra do Heroísmo.
É um entusiasta de música, em particular da bateria, e que ama a natureza, em particular o mar. Pratica bodyboard há 29 anos, agricultura ecológica há 10 anos e mais recentemente a natação em águas abertas e ashtanga vinyasa yoga.