Uma coisa do âmago

Marta Cruz
#Chronicle

«Então, e tu vais conseguir que esse rapaz seja do Benfica?», diz, o capacete debaixo do braço, os olhos azuis e o sorriso simpático que me fazem engolir que na verdade não sou do Benfica, que nunca vira tanto futebol como agora e que só sei o que é um fora de jogo porque um dia o decorei.

O Emanuel é um dos nossos vizinhos (por acaso também nosso carteiro) por quem o Joel tem um carinho especial, de imediato explicado pela meiguice com que me trata. «Ah, isso é complicado, Emanuel...», respondo alegre, mas com medo de que perceba a minha dissimulação e, de repente, o clube de futebol tenha de facto de entrar na lista de coisas que ainda tenho por resolver, logo depois de arrumar o quarto, preparar a mala da maternidade, montar o berço. «O Joel vai torcer para que seja do Sporting e o meu pai não vê futebol — não temos mais ninguém que inflame a chama noutro sentido», continuo. Mas o Emanuel repõe o capacete calmamente: «Vais ter de ser tu a puxar por ele». E eu mantenho-me sorridente, porque nunca fui próxima de um vizinho ao ponto de lhe saber a cor dos olhos, quanto mais de me sentir fiel depositária dessa esperança de ver nascer em nossa casa um (amigável, espero eu) atrito entre pai e filho que vêem a bola juntos, mas tomam lados opostos da bancada.

É que eu vivi os primeiros dez anos da minha vida adulta em Lisboa e, embora traga de lá óptimas memórias, tenho poucas lembranças dos meus vizinhos. Dez anos numa casa de que me despedi sem pena mas com choro, de onde trouxe pratos e colchas, mas nada sobre a família do 1.º Direito, cujo avô uma vez socorri por ter feito um corte no pé, e menos ainda sobre a rapariga do 4.º Esquerdo, a quem tantas vezes devolvi a roupa interior que voava do estendal dela para o meu terraço. Não me entendam mal: era um bairro diferente dos dormitórios da capital, o Lucas do café perguntava pela saúde da minha tia, a senhora da mercearia sabia que eu era «a mais nova» dos açorianos e a dona Lurdes e o senhor Eduardo, porteiros do n.º 8, trataram-me sempre por «Martinha» e nunca perderam tempo a esconder-me as violentíssimas discussões em que embarcavam para lá da nossa parede partilhada. Mas nesses dez anos também nunca soube o nome das vizinhas que via na rua, só recebi olhares negativos quando deixei móveis à porta do prédio para serem recolhidos pela Câmara e nunca tratei ninguém por «vizinho» ou «vizinha» — coisa que hoje faço diariamente não porque não saiba o nome de todos, mas porque aqui não parece haver nada mais amável do que isso de reconhecer que vivermos perto uns dos outros é sinal de que dispomos de uma proximidade diferente da que gozamos junto dos que só conhecemos do supermercado.

Aqui, em dois anos, conheço quase todos. Conheço o Duarte, pedreiro exímio a quem temos de pedir «por favor» para nos fazer um buraquinho na agenda; a Mercês, que em tempos teve uma mercearia mítica; a dona Fernanda, que me acena desconfiada do seu alpendre, mas vem comer uma fatia de bolo ao nosso jardim porque «a vida não são só tristezas»; a senhora Lúcia, que nos deixou um presente de casamento na caixa do correio e se ri porque o Joel «já era para ser avô»; o Carlinhos, que nos pinta a casa e é muito amigo dos nossos bichos; e a Fátima, que é capaz de ganhar ao Emanuel e ser a vizinha mais positiva que alguma vez tive, tão positiva que uma vez consolou a mãe do Joel pela morte da dona Maria do Carmo, mãe dela, com um: «Ao menos morreu no mesmo dia que a princesa Diana».

Posso estar enganada, mas aqui ser-se vizinho é diferente. É mais uma coisa do âmago do que da conveniência. E eu sei que fingir-me benfiquista não é pouca coisa — que isto das dicotomias futebolísticas tem um lado emocional —, mas, sem querer causar tragédias, acho melhor preservar a mentira em troca dessa intimidade que o Emanuel estabeleceu entre nós. Parece-me demasiado valiosa para ser dispensada.

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Natural da ilha Terceira, é licenciada em Estudos Gerais com especialização em Edição de Texto e mestre em Crítica Textual com uma dissertação sobre os manuscritos da Vida de Santa Senhorinha de Basto. Com o coração apontado à escrita e um fraquinho por arquivos e espólios, trabalhou como revisora de texto freelancer durante três anos, mais tarde numa empresa de serviços linguísticos e de tradução e em 2019 criou a Escrivaninha. É responsável pelo projecto de edição crítica da correspondência e obra do poeta Bernardo de Passos, em parceria com a editora Edições Sem Nome e o Centro de Linguística da Universidade de Lisboa onde colaborou entre 2014 e 2021. Hoje é bolseira de Doutoramento pela FCT no mesmo centro de investigação e dedica-se ao estudo e edição dos manuscritos portugueses dos Diálogos de São Gregório.


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia