Dos comedores de pão na Antiguidade Clássica…

Carla Devesa Rodrigues
#Especial da casa

Se a fama, cedo, o Homem desejou eterna; a fome, essa, desde os alvores que nunca conseguiu arredar do quotidiano pois, somente mitigada ou, em pleno saciada, sempre se fez sentir. Assim, não será de espantar que, mesmo em tempos de carestia – por temor e prevenção –, os alimentos capazes de lhe sustentar a vida fossem os mesmos a ocupar, nas aras de templos, o lugar de caras oferendas. No que à Europa Ocidental diz respeito, eram eles o cereal, a videira e a oliveira: transformados em pão, em vinho e em azeite e convertidos na trindade mediterrânica basilar.

No conjunto das cidades-estado que, no século V a. C., compunham a Hélade, o alimento básico era a cevada, consumida pré-cozinhada – sob a forma de maza ou papa –, à qual se adicionava, à escolha, água, azeite, leite ou mel; o trigo esse, ficava destinado à preparação de bolos chatos, semelhantes a pão fermentado, e de bolos doces. As favas, o grão-de-bico, as lentilhas, as ervilhacas, as sementes de linho, de sésamo e de papoila dormideira, serviam de complemento à dieta. Toda a carne, com excepção da caça e das aves, era consumida apenas em contextos sacrificiais; o peixe, de mar e de água doce, e o marisco eram, com frequência, conservados em salmoura. Também o queijo desempenhava um papel fundamental e era apreciado directamente ou, em conjunto com inúmeros outros ingredientes, sob a forma de bolos doces. Se os legumes verdes, como o alho-porro, o rábano, os agriões, o nabo, as beldroegas e a armole abundavam, o alho e a cebola ocupavam, pelas propriedades que criam curativas, um lugar de destaque. As confecções recebiam os aromas de, por exemplo, os poejos, a manjerona e o tomilho. De entre os frutos, frescos ou secos, enumeravam-se os melões, as uvas, os figos, as peras, as maçãs, os marmelos, as sorvas, as nêsperas, as romãs e as amêndoas. Se bem que, ingerissem bebidas refrescantes, como o cyceon, à base de farinha de sêmola e hortelã-pimenta, ou refresco de romã com cevada e água, em partes iguais; era, o vinho, a bebida por excelência, tinto ou branco, áspero, seco, macio, doce, leve, encorpado, quente ou fraco; e, sobretudo, devido à sua fermentação retardada e maturação prolongada, muito alcoólico, podendo chegar aos 18 graus. 

Cratera grega em terracota - c. 550 a. C.
Cratera grega em terracota - c. 550 a. C.

Nesta sociedade que se considerava exemplo de frugalidade, o momento que se seguia à ingestão dos alimentos, aquele em que se bebia em conjunto, o symposion, era também um exemplo de civilização: uma refeição realizada na sala dos homens, o andron, e, por isso mesmo, de acesso exclusivamente reservado a indivíduos do sexo masculino. Aí, os convivas reclinavam-se em divãs, diante dos quais se instalavam mesas amovíveis; os seus corpos repousavam sobre mantas e os cotovelos eram suportados por uma almofada; para pousar o calçado, utilizavam um tamborete, que se encontrava debaixo do leito; a loiça, ficava reduzida a alguns pratos e comia-se com os dedos; os restos, esses, eram atirados para o chão; escravos asseguravam o seu serviço. Estes banquetes eram reuniões rituais onde, as demonstrações de sabedoria e de capacidade de oratória, serviam para constituir um kosmos; estes banquetes eram também espetáculos privados onde, a cerimónia do vinho, de séria e libertadora, poderia passar a descortês e excessiva, chegando a terminar em orgia e em violência…

Em muito herdeira da cultura grega, a civilização romana, não adoptou a sua sacralidade do banquete, no qual o bebedor se deixava possuir pelo vinho e se transmutava em receptáculo de divindades como Dionísio ou as Musas. Para Roma a cena era o lugar de partilha onde se apresentava, ao mesmo tempo, a carne e o vinho; em Roma, por exemplo, a honra de um nobre encontrava-se ligada tanto à sua frugalidade pessoal como à sua sumptuosidade de anfitrião; e Roma encarava a alimentação como uma linguagem que, distintamente, servia para situar cada um no tempo, no espaço e, sobretudo, na sociedade. Ainda que, grosso modo, os alimentos base fossem, porque também mediterrânicos, os anteriormente referidos – o pão, o vinho e o azeite – a esta urbe – centro de um vasto império, que substituíra os confins da cidade pelos do mundo – chegavam estranhas peças de caça: girafas, ursos, antílopes, faisões, entre outros. 

Copo romano de vidro reticulado, século IV
Copo romano de vidro reticulado, século IV

Pertencendo a cena, também chamada de conuiuium ao assumir dimensões mais importantes, ao tempo da paz, do lazer e do supérfluo, tudo nela se subordinava aos prazeres dos convivas: a organização da cozinha, o luxo do serviço, a ostentação da loiça e a beleza dos escravos. Embora, se ingerissem alimentos reconstituintes, era essencialmente composta por carnes, que apenas se comiam pelo prazer de o poder fazer. Aí, o próprio pão, se transformava numa guloseima: feito de trigo triturado, demolhado durante nove dias, era depois amassado com sumo de uva e, por fim, cozido, em potes, no forno. A sua ementa, regada com vinho em abundância, constituía-se em três serviços. Começava pela gustatio, com ovos e azeitonas, acompanhados por pão e vinho temperado com mel ou, caso detivesse maior requinte, poderia incluir ostras, bivalves, arganazes, tordos. Seguia-se a cena, propriamente dita, organizada em torno de uma carne sacrificial, consumindo apenas uma pequena parte do animal abatido, como por exemplo, mamilos e vulva de porca ou línguas de flamingo; a que se juntavam caça de pelo e de penas e peixes em molho ou em terrina. E terminava com as secundae mensae, servindo os alimentos mais civilizados e os mais doces: os frutos, secos ou não, como as nozes, os figos secos e as uvas de conserva. Pretendia-se, através da partilha do prazer alimentar e da satisfação da gula, uma convivência à mesa capaz de reforçar os laços entre os comensais…

Desses gregos e romanos, meros comedores de pão – expressão que Homero, querendo distingui-los de Deuses e de Titãs, atribuiu aos Homens –, que se excederam, transformando o cozinhar alimentos em gastronomia, somos herdeiros e devedores.

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Carla Devesa Rodrigues

Técnica Superior do Museu de Angra do Heroísmo, pós-graduada em História e Arqueologia Medievais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É autora de diversos artigos nas áreas da História, Arqueologia, Museologia, nomeadamente na área da História da Alimentação.


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia