"É necessário colocar os Açores nos olhos do mundo", Cristóvam.

Helena Fagundes
#Queres é conversa


"Uma terra sem Cultura é uma terra sem alma, não vale um chavo", Cristóvam. 

O músico e compositor terceirense, que lançou o novo disco "Songs on a Wire", diz que candidaturas como a de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura são oportunidades para mostrar a Região além das belezas naturais. 

Em entrevista à jornalista Helena Fagundes (para a 9 Bairros), Cristóvam fala da escrita de canções, desde o início; do tema "Andrà Tutto Bene", que marcou os tempos da pandemia, e da maturidade que chegou para ficar.

© Timothy Lima
© Timothy Lima


Como apareceu a escrita de canções?

Tive a primeira guitarra aos onze anos. Os meus pais consumiam muita música. Fui criado a ouvir Pink Floyd, Dire Straits e Super Tramp. Um grande amigo da minha família, o Jorge Peres, costumava tocar músicas dessas bandas nas festas que os mais pais faziam lá em casa. Para mim, enquanto criança, era fascinante. Nesse Natal, o Jorge Peres ajudou o meu pai a escolher uma guitarra. Aprendi a tocar o "Wish You Where Here" com ele. Um amigo, o Jorge Silva, que hoje é técnico de som, também estava a aprender guitarra ao mesmo tempo. Aprendemos o "Come As You Are", dos Nirvana, o máximo clichê de quem está a começar. Depressa percebi que gostava muito mais de fazer melodias do que tocar coisas dos outros. Isso, imediatamente, fez ponte para querer escrever coisas e gravá-las.

Do que falavam essas primeiras canções?

Coisas de adolescência...

Amores "encardidos"?

Sim, levados ao extremo, com a cena das hormonas a ajudar... Graças a Deus, não tenho exemplares disso em lado nenhum. Lembro-me que queria começar a gravar canções e usar outros instrumentos e, como não conhecia mais músicos, isso levou-me a tocar baixo, teclas, bateria, um pouco de tudo, mas mal... Comecei a gravar demos dessa forma. Perdia-me no quarto, até às quatro da manhã. A minha mãe tinha de entrar pelo quarto dentro e mandar-me dormir, que amanhã tinha de ir para a escola. No dia a seguir, estava na escola a contar os segundos para ir para casa fazer experiências. Era uma coisa muito ingénua, porque eu não tinha objetivos. Puro divertimento. A minha adolescência foi muito repartida entre isso e andar de skate com os amigos até tarde. Andei por meia dúzia de bandas de garagem que nunca saíram da garagem. Passei por algumas bandas de punk e pop punk, que é uma coisa que hoje em dia ninguém imagina quando ouve a minha música. Depois tive os "October Flight", que foram uma parte importante no meu percurso.

Numa ilha, as redes sociais desempenharam um papel...

Sim. Na altura estava no "My Space" e colocava lá as demos. Sempre fui um bocadinho atrevido na minha postura na música, na medida em que nunca tive receio de falar com ninguém, independentemente do estatuto. Nunca tive medo de mandar a minha posta de pescada. Uma dessas postas de pescada foi pelo "My Space", para o Gomo, que na altura tinha aquela música "Feeling Alive", que era muito grande. Ele era uma estrela, estava na MTV. Perguntei-lhe se não se importava de ouvir as minhas músicas e de me dar algum feedback. Ele foi muito simpático e respondeu que tinha gostado muito das minhas demos e que gostava de me conhecer, se eu quisesse ir até Lisboa. Eu era um miúdo, com uns 17 anos. Fui. Naquele dia, ele estava a fazer uma conferência de imprensa e estavam lá a Blitz, a SIC, a TVI. Fui apresentado aos The Gift. Na cabeça de um adolescente dos Açores que, toda a sua vida, tinha ouvido dizer, pela população local (não tanto pela minha família, que sempre apoiou a ideia de eu ser músico), que era impossível ter esse tipo de aspirações, foi marcante. Regressei com uma dose de confiança incrível. Não me parecia já tão impossível. Foi um de muitos momentos ao longo da minha carreira. Umas rampas que vamos encontrando, que nos dão motivação.

Também houve a vitória no Angrarock. Que importância teve?

O Angrarock era muito importante para a região, porque vinham bandas das ilhas todas. Era um propósito. Nos Açores, vivemos muito longe da realidade do circuito das bandas e era necessário haver um circuito maior. Tenho estado a lutar um pouco por isso, para haver mais intercâmbio entre as ilhas, mais circulação de artistas. A cultura é aqui um pouco esporádica. Uma terra tão cultural como a nossa merecia que, pelo menos duas ou três vezes por mês, tivéssemos coisas a acontecer que levassem as pessoas ao teatro. Coisas que movam gente, não necessariamente bandas para massas, mas artistas mais pequenos, interessantes, que são importantes para fidelizar o público açoriano às salas. Temos de começar a gostar de ir a uma sala ver um artista sem saber quem ele é. A ilha de Santa Maria, com os seus festivais, é um exemplo perfeito disso. Isto vai começar, forçosamente, com pouca gente a ir às salas, mas temos de insistir.

Que importância tiveram os concursos online de canções?

O mais importante para mim foi o "International Songwritting Competition", porque eram 16 mil canções a concurso e só as primeiras dez eram ouvidas pelo painel de júris, que tinha pessoas de editoras do mundo todo e cantautores que eu admirava imenso, como Tom Waits, o Grant-Lee Phillips, ou os Keane. Na altura, o meu objetivo era só chegar a ser ouvido por essas pessoas. Recebi o primeiro prémio de artistas sem contrato discográfico, o que me proporcionou uma felicidade interna de achar que estava no caminho certo. 

Qual foi o sentimento, com o tema "Andrà Tutto Bene"?

Levou a minha música a muita gente, mas chegou numa altura da minha carreira em que acho que tive maturidade para digerir aquilo como aquilo que foi. Se acontece com 18 ou 19 anos, tinha perdido completamente a noção de quão difícil é ser músico. Recebi milhares e milhares de mensagens, de todo o lado, os subscritores multiplicaram-se às dezenas. Mas já tinha as minhas deceções na música e não achava que, a partir dali, ia encher estádios.

© Timothy Lima
© Timothy Lima


Mas já tocou em vários sítios da Europa, em salas esgotadas. Como foi viver isso?

Antes do "Andrà Tutto Bene" já tinha essa experiência, porque fiz a primeira parte de dois artistas em Portugal. Um foi o Tim Hart, que acabou por produzir este disco, e o outro foi o Stu Larsen. Fui convidado para fazer uma boa parte da tour europeia dele, o que me permitiu fazer concertos em Paris, Leuven, Groningen, Cologne... Foram concertos para salas completamente esgotadas, uma realidade diferente. Mas, logo no dia a seguir a acabar, arrumei as coisas às duas da manhã, tive de me pôr num autocarro de Groningen para Amesterdão. Horas de viagem, horas no aeroporto, viagem para Lisboa, viagem de comboio para o Porto... Para chegar ao Porto e ir à FNAC de Santa Catarina tocar só para a senhora que trabalhava no café. É um choque brutal com a realidade. Não dormi, fiz três concertos nesse dia. Esses três concertos, juntos, não sei se tiveram trinta pessoas. Ou ganhas estaleca, ou vais para casa. A música e as artes não são um mar de rosas. Quando chegas a uma certa idade e ainda estás nisto é porque gostas muito, porque, obviamente, já passaste por muita coisa. O "Andrà Tutto Bene" levou-me a muita gente, às duas editoras onde estou, provavelmente, porque finalmente tinha números, mas tive perfeita noção de que as coisas iam acalmar. Foi mais uma rampa. Umas são mais importantes do lado anímico, outras na perspetiva da projeção de carreira.

Sendo açoriano, esses altos e baixos são mais acentuados?

Acho que são. Por um lado, de uma forma positiva. Vive-se toda essa agitação, mas depois regressa-se para a calma e para a família. Estou aqui a falar, mas dormi em dez camas diferentes nos últimos 15 dias, em concertos por todo o lado. Não troco o retorno à ilha por muita coisa. Agora, há um preço óbvio a pagar. As grandes decisões acontecem nas grandes cidades. A música, à semelhança de outras áreas da cultura, vive muito de conhecer as pessoas certas, e essas pessoas certas, normalmente, andam nos grandes meios. Mesmo na minha carreira, muito teve a ver com isso, com estar no sítio certo à hora certa. Isto também é trabalhável. Em vários sítios do mundo, normalmente desfavorecidos em termos de oferta, há feiras de música, onde se chamam profissionais da cultura. Chegam editoras, agentes, músicos e há ali um intercâmbio cultural que, de repente, torna aquele sítio num lugar onde as coisas acontecem. Era importante para os Açores esse tipo de coisas acontecerem. Agora, quanto mais velho vou ficando, menos me arrependo de viver na Terceira. Lembro-me de uma frase do Tim Hart, que me disse, sobre isto, que "Qualquer decisão que se faz na vida baseada na família, nunca vai ser uma má decisão". Nas decisões profissionais, muitas vezes, hipotecamos o lado familiar e essa fatura é bem mais cara. Gosto deste balanço. Para já, faz sentido.

O novo trabalho reflete essa maturidade?

Embarquei numa forma de gravar o disco em que já sabia muito melhor aquilo que queria. Não me perdi em devaneios no estúdio, de andar a experimentar mil instrumentos por música. Queria que as canções e as letras fossem fortes. Trabalhei exaustivamente com o Tim nessa parte. Queria ter a certeza que aquelas 12 canções não tinham um único verso que eu quisesse mudar. Depois, quando fomos gravar, queríamos um disco cru, pouco polido e muito virado para o essencial. Os grandes discos são feitos de imperfeições. Quando escuto um disco daqueles icónicos, adoro quando ouço o banco a ranger ou uma folha a virar, uma nota fora do sítio. Penso, “isto aconteceu mesmo". Neste disco não há perfeição, porque as pessoas não são perfeitas.

Qual é a história que este disco conta?

Não é conceptual, não há uma mensagem comum, deixo isso para os Pink Floyd… É mesmo uma coleção de canções, cada uma com o seu universo de história. São sempre pessoais, a minha escrita é motivada ou por coisas que me acontecem ou que acontecem a pessoas próximas o suficiente para eu quase as sentir como minhas. As canções mais felizes que eu já escrevi acho que estão neste disco e as mais miseráveis também. Estão todas em harmonia. Tem a ver com esse compromisso com a verdade. Tenho uma canção neste disco, "Crooked Lines", mostrei-a, pela primeira vez, ao Tim Hart, quando toquei com ele no Porto. A resposta dele foi "Man, that’s dark" ("Meu, isso é sombrio"). É uma canção tão pesada que eu não a queria levar para o disco. Ele discordou. Disse-me que a canção é pesada, mas é real e que não devemos colocar filtros nesse tipo de coisas. O trabalho de um cantautor tem essa parte delicada, que é muitas vezes colocar o coração numa bandeja. É vulnerável.

Não é só esperar que as pessoas ouçam as canções, mas é preciso dar-lhes alguma coisa?

Alguma coisa real. Tens de te expor, também em palco. Isso é difícil, mas no disco é ainda pior, porque estás a imortalizar o momento mais miserável da tua vida. Gravado, para que seja ouvido para todo o sempre. Acho que a arte é feita disso. Ou então é sintético, do que, infelizmente, o nosso mundo está cheio, quer seja nas redes, ou na rádio. Ainda acredito nessa escola antiga, sou muito fã dos “Dylans” e dos “Springsteens”, que não tinham medo de fazer isso. Sou um aprendiz e tenho de praticar o que vou aprendendo.

O que se pode dizer sobre a importância de candidaturas como a de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura, de chamar os olhos dos outros para o que se faz nos Açores?

É mega importante. Somos uma região especial, temos cultura para dar e vender. A Terceira, para dar um exemplo, é o sítio em Portugal com mais músicos por metro quadrado. Uma em cada três pessoas toca um instrumento. Isso é muito peculiar e muito raro. Temos poetas incríveis, boa música, boas artes plásticas, bons fotógrafos e realizadores. É necessário colocar os Açores à frente dos olhos do mundo. Que se saiba que os Açores existem, que é um trabalho que tem sido bem feito do ponto de vista de promover a nossa região enquanto beleza natural, mas também há a outra componente, cultural. O que está cá dentro. A identidade de uma terra é a sua cultura, podem dizer o que quiserem. Por mais que se corte nos orçamentos da Cultura, ou que se faça o que se quiser, uma terra sem Cultura é uma terra sem alma, não vale um chavo.

Em todos os concertos, esteve sempre lá a ilha?

Está sempre, e encontra-se nas canções e numa certa nostalgia que os açorianos têm. A palavra saudade, para um açoriano, tem um peso dramático. Quando estamos, queremos sair, mas quando saímos, só queremos voltar. Sempre senti isso. Os Açores têm uma mística. É o ar que respiramos que é diferente do ar de todo o lado, o cheiro a sal, a mar. Tudo é único. Se fores daqui, verdadeiramente, isso está sempre contigo.