"A era táctil e digital vem acompanhada de falta de memória histórica", Cláudia Cardoso.

João Aranda e Silva
#Queres é conversa

O que é cultura? Provavelmente tudo! Porém, para uma grande maioria será algo vago entre o entretenimento e a perda de tempo, que para muitos é apenas e só dinheiro. A cultura tem sido, por isso, uma pequena ilha entre continentes de povos, salvo honrosas exceções, que exemplarmente dignificam os seus defensores e promotores que dela tiram o máximo de conhecimento. O conhecimento leva ao saber e este ao progresso das pessoas.
Cláudia Cardoso é uma dessas pessoas que acredita na cultura, por ela batalha, como alavanca para o progresso intelectual das populações. Atualmente, é a diretora da Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo, Arquivo Distrital e Depósito Legal dos Açores.
Vivemos em ilhas, e esta jovem procura que a ilhota de cultura sobressaia, seja mesmo tão grande, como a ilha Terceira-Açores, onde ela se desenrola e desenvolve.
No atual quadro do desenvolvimento civilizacional, com inúmeras manifestações de niilismo que vão ocorrendo um pouco em redor do planeta, não será fácil ter uma análise, e consequentemente uma definição correta, concreta e adequada de que iniciativas culturais devam se desenvolvidas junto das populações hoje tão fixadas ao “brevismo” em que nos encontramos atolados.
Como muito bem disse, e premonitoriamente, Nietzsche, e agora revivemos “Os meios intelectuais não passam de faróis ou abrigos no meio deste turbilhão de ambições concretas”. Desmedidas e inócuas, dizemos nós!
Cláudia Cardoso fala-nos, também, da liberdade que custou a vida a tantos que por ela lutaram e hoje é posta em causa por aqueles que nela nasceram e medraram, sem nunca saberem o que foram, pelo menos, autoritarismos, quantos deles violentos.

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Como professora, política, cronista e, agora, diretora da Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo, tem um percurso que lhe permite, creio, uma visão sobre o estado da educação e da cultura a nível local, nacional e, quiçá, internacional. Como os define atualmente?
A educação e a cultura sofrem do mal de termos sido um dos países europeus com uma ditadura mais longa. A censura impediu e sancionou o acesso à cultura, porque gente que pensa é sempre muito perigosa e, na sequência disso, quando chegou a Revolução de abril de 74, com a abertura de acesso aos livros, esta coincide, praticamente, com a chegada da televisão a Portugal. Assim, a população não se viu obrigada a recorrer aos livros como fonte de informação e conhecimento, porque encontrou uma fonte generosa e fácil, a televisão, que o serviu já mastigado. Se a esmagadora maioria da população era analfabeta como escolarizá-la e criar-lhe hábitos, ou melhor, necessidade de leituras. Não houve espaço, ao contrário do que sucedeu noutros países europeus. Por isso, a leitura não está entranhada na generalidade da população, e a cultura, ou é confundida com entretenimento, ou é vista como supérflua. Ao contrário do que defendia Natália Correia quando invetivava que “a poesia [era] para comer”. Além disso, os portugueses, em geral, são abstémios culturais. As gerações mais recentes, embaladas pelo Google, que informa (muitas vezes mal), e anestesiadas pelos ecrãs vêem no livro um objeto estranho, difícil, exigente, penoso, que invoca a reciprocidade. E ninguém está para dar muito de si atualmente.


Temos assistido, de há uns anos a esta parte, a ataques a obras de arte. Como classifica esta atitude?
Classifico-a como vergonhosa e aberrante. Gerações lutaram para que pudéssemos ser detentores de uma liberdade que agora degenera a olhos vistos. As questões ambientais, que são gigantescas e preocupantes, não lhes dão o direito de praticarem imbecilidades em nome da sua defesa. O belo é apátrida, é anacrónico e é património mundial, por essa razão nada justifica a sua destruição, mesmo que em nome do mais nobre dos princípios. 


De que forma observa as alterações, visíveis, no denominado comportamento social civilizacional, com crises identitárias, e entre gerações?
Observo que a era táctil e digital vem acompanhada de falta de memória histórica, e que o acesso da atual geração à informação não lhes permite aprofundar as questões. Isto significa que são especialistas em generalidades, ou seja, sabem pouco sobre muito, o que acarreta a inevitável questão da superficialidade. Daí que o generation gap impere, com dificuldades de compreensão óbvias entre gerações. A nossa democracia é jovem, não tem meio século e os jovens ignoram a maioria dos ganhos civilizacionais dos seus pais, por exemplo. 


A culpa desta situação é das gerações dos 70/60 anos e 50/40 anos de idade que se viram obrigados a devotar ao trabalho descurando a passagem de testemunho de valores, princípios e referências?
É redutor atribuir culpas, mas a democratização da escola trouxe uma desvantagem: a demissão dos pais da sua responsabilidade parental. Ser pai não é somente um fenómeno biológico, é sobretudo uma responsabilidade social. Os pais entregaram essa missão à escola, e a escola não tem forma alguma de lhe dar resposta. A pressão da vida chamada moderna, reduzida às cidades, independentemente da escala delas; a pressão profissional, a entrada das mulheres no mercado de trabalho, a pressão pelo desempenho profissional, a sociedade de consumo em que vivemos, em que quem não tem não é, tudo isso contribuiu para o cenário atual. Os valores, os princípios e as referências tendem a ser hoje uma imagem bonita na moldura da família. Um parente distante. E a exaltação da juventude ajudou nesse descalabro, porque, na verdade, a sociedade atual desvaloriza os velhos e acentua apenas as virtudes da juventude, com isso ignora a sabedoria, espezinha o conhecimento de experiência feito e cria a bolha hermética da eterna juventude.

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Na sua opinião, para onde caminhamos? Podemos pensar numa flagelação autofágica desta civilização?
Caminhamos para um limite que implicará necessariamente um retorno. A história é cíclica e, como tal, batendo no fundo só resta um caminho: o de regresso. Estamos convencidos de que somos os maiores, modernos e civilizados, mas continuamos a manter aspetos retrógrados de comportamento, a infligir guerras por posse de território, como na Idade Média, a não respeitar as mulheres, a explorar seres humanos, crianças, e as grandes instituições das sociedades ocidentais, como a igreja católica, a liderarem a hecatombe. A descrença é um motor forte para a implosão, por isso destruímos o outro, sem perceber que nos destruímos a nós mesmos; arrasamos com o planeta, sem percebermos que comprometemos a nossa sobrevivência. Em certa medida, somos mais rudimentares do que o homem paleolítico.


É notório o desinvestimento que foi feito em educação e, consequentemente, na cultura. Tem ideia de quanto custa aos níveis local, nacional e internacional a ignorância?
Tenho a certeza de que não tem um custo estimado, mas tem, seguramente, um custo irreversível. Não educar, não cultivar, implica seca e desertificação. O problema central não é o desinvestimento, que o houve, é questionar como são tão parcos os frutos desse forte investimento. Ponderar onde falhámos e porque falhámos. Como gerámos uma geração menos conhecedora e, inclusivamente, alheada do seu próprio desconhecimento.


Nota, como eu noto, um desinteresse maioritário dos jovens pelos aspetos ligados ao conhecimento em favor do culto do corpo e da imagem externa?
Inevitavelmente é isso que grassa: a imagem é tudo, em detrimento da palavra. E, portanto, estamos aquém dos gregos que defendiam mens sana in corpore sano. Menosprezamos por completo o cultivo intelectual, porque o que importa é parecer. E, assim, os jovens de hoje vivem da aparência, o que leva a que, novamente, se desvalorize o envelhecimento, se despreze a sapiência do velhos e se subsuma a existência à imagem, à aparência, descurando o ser, a essência, o cerne do indivíduo. As redes sociais inflamaram este cenário, em que uma imagem se propaga a uma velocidade estrondosa, arrastando milhares de gostos de pessoas que são perfeitos desconhecidos. Daí nasce a veneração imagética, os ídolos virtuais, o culto da aparência.


Vivemos na utopia – andando à babugem – de que alguém fará por nós o que só a nós cabe fazer?
Alguns de nós sim, outros lutam por um mundo melhor, abrem caminhos ainda, fazem alertas. Mas, os portugueses padecem do velho sebastianismo, órfãos de um líder que os guie e lhes diga como proceder. Conhecidos pela sua proverbial vocação de treinadores de bancada, escolhem facilmente o lugar da crítica fácil e do juízo de valor. E esperam que alguém feche a porta. D. Sebastião tarda em voltar, porém.


Que ações, ou mesmo medidas, podem fazer reverter a situação?
Uma aposta decisiva numa educação baseada em competências e não em conhecimento, que hoje está à distância de um clique, e um governo que veja o acesso à cultura como essencial à evolução duma sociedade. Que não procure imbecilizar o povo, entretendo-o com programas da manhã. Na verdade, somos ainda muito o país dos três efes: Fátima, futebol e fado, sendo que o futebol ganha claramente aos outros dois. A escola tem de criar cidadãos de pleno direito e possibilitar a mudança social. Coisa que não acontece. A escola de hoje é muito semelhante à do século XIX. A escola deve transformar-se significativamente, dando espaço ao aluno para ser quem é, explorando as capacidades que tem. Mas continua a ensinar o mesmo a todos e a preparar alunos para fazerem exames nacionais e entrarem na universidade. Não é heterogénea e é extremamente castradora daqueles que têm capacidades associadas ao pragmatismo e à atividades de índole manual. Os seres humanos são aprendizes e pensadores criativos natos; porém, os ambientes onde se ensina não são inspiradores, os professores estão genericamente desmotivados e a escola não apoia a diversidade, não a promove, nem a deixa respirar. É difícil promover a mudança, mas é preciso começar.


As suas iniciativas, muito meritórias a diversos níveis, na Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo têm o retorno público que imaginou ou desejou? 
As iniciativas que a Biblioteca começou a desenvolver sob a minha direção tiveram o mérito de colocar este equipamento ao nível do que se faz noutras bibliotecas de Portugal e noutros países da Europa. Nos quais se valoriza a biblioteca como centro de acesso ao conhecimento, cruzando saberes, estimulando o debate e o contraditório. O público tem aderido, formando uma verdadeira comunidade, e permitindo a realização de concretizações e de sonhos da equipa que faz mover a biblioteca, de entre os quais ressalvo a criação de um projeto designado Comunidade de apoio ao Estudo, que recorre a professores voluntários que apoiam um grupo de alunos, em variadas disciplinas. É um do imenso orgulho verificar que em Angra do Heroísmo a biblioteca cumpre uma das suas mais nobres missões sociais.

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Cláudia Cardoso, professora de Língua Portuguesa do ensino secundário, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, e mestre pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com a tese «Se Bem me Lembro: Uma introdução à crónica televisiva de Vitorino Nemésio», sobre o célebre programa dos anos 70. Foi Deputada Regional, vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS, Presidente da Comissão dos Assuntos Sociais por duas legislaturas; membro do Governo dos Açores como Secretária Adjunta da Presidência do Governo Regional dos Açores e como Secretária Regional da Educação e Formação. Escritora, cronista, conferencista, participante convidada de diversos orgãos de comunicação regionais. Atualmente, exerce a função de Diretora da Biblioteca Pública Luís da Silva Ribeiro, em Angra do Heroísmo.