Permanecer aqui é como um regresso

Vânia Chagas
#Crónica

Nesta casa que fica na linha que une a ilha ao mar entra, por vezes, o cheiro do vento bravio que desceu a encosta trazendo consigo o verde das terras, o acre das raízes que a compõem. Leva tudo isso para o mar que se revela nas janelas, que se expande através delas até chegar por sua vez a um qualquer peito no qual se recolhe.

Aqui, neste recanto do Corvo, pode ser meu o peito que se oferece ao mar. Porque aqui o decompor dos dias permite a languidez do tempo, um sossegar do frenesim supérfluo que não transporta em si a passividade, mas sim o transpor da criatividade. Como se a poesia estivesse sempre presente, apta a ser colhida – e escolhida.

Viver no Corvo, neste permanecer sem intermitências de quase um ano, num balançar conjunto de duas pessoas que acolheram em si a ilha, permite-me ter a audácia de falar dela como já sendo minha, num encanto que transborda para o demais pontilhado ilhéu – para o tanto que ainda anseio por (que preciso) conhecer. Escolher estar aqui traz em si também essa responsabilidade, a de preservar e conhecer cada vez mais isto de ser ilhéu, açoriano, atlântico, corvino.

Tenho na sala uma fotografia de infância onde sorrio no meu vestido rosa com pássaros alados – vejo no meu olhar feliz uma simplicidade que no acto de crescer se foi debatendo com o torpor citadino e o fulgor breve do anonimato. Percebo agora que este retorno a uma simplicidade dos dias era cada vez mais aguardado e que isso foi encontrado e abraçado na acalmia corvina.

Escrevo no relento do cair da tarde, no dourado de uma luz que invade as rugas da chaminé vizinha. A ilha defronte é cortada pela torre da igreja e por linhas de sombra. O som dos garajaus interrompe o das vozes ainda no cais. Começa a impor-se pouco a pouco o silêncio da noite, onde serão incautos apenas o grito dos cagarros e o bulir das ondas. 

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Sei que no Outeiro aguardam já os mais velhos sentados nos degraus ao longo do largo. Ao chegar é possível ouvir o seu cochicho sorridente. São muito poucos, mas estão lá sempre ao lusco-fusco. Caminhar até eles para ouvir as suas histórias de quando aquele largo se enchia de corvinos é um dos privilégios de estar no Corvo. Existe muita dureza nas coisas antigas que estes quase contadores partilham, mas também um brilho no olhar ao relembrar o passado, as idas a pé até às terras de cima, as folhas do milho que picavam as mãos, as rodas de mulheres no acto de fiar a lã, as corridas nas pedras quando o mar lhes roubava as lapas, as intempéries que não impediam mesmo assim que, por exemplo, as mulheres saíssem de barco para parir noutras ilhas. 

Gosto de ouvir pedaços de histórias sobre a casa onde vivemos agora – sobre o casal Florinda e António, os seus trejeitos corvinos. No muro exterior do pátio permanece a inscrição ‘L.F.J. 1963’ talhada pelo único filho de ambos – como um tesouro deixado por quem outrora respirou estas paredes. Isso acalenta a vivência aqui.

Tal como os passos dados pela manhã no caminho da padaria e os bons-dias que todos compartilham ao se cruzarem em busca do pão diário. Nessas manhãs, quando o céu está limpo, mira-se o sol a crescer na ponta da Rocha e a quebrar no topo das casas da Matriz, que ficam expostas na sua própria nudez de pedra. Se chove, o negro do mar entorpece com a sua beleza brusca, o seu estertor de coisa antiga e fera. E sempre os estorninhos teimam em chilrear no fio que liga as casas, tal como todos teimam nesse ‘bom dia’ que parece tantas vezes transportar em si toda a ilha.

Lembro-me dos primeiros dias aqui já nesta casa que é nossa, numa robustez diversa das primeiras passagens pelo Corvo. De como os grilos se ouviam no miradouro defronte e se conheciam já as vozes de quem passava na rua. O som do mar, sempre imenso. Falam-me (os de fora, por vezes os daqui) dessa imensidão como de um limite que tranca – para mim, é uma liberdade (das muitas que encontro aqui).  Sinto que o mar recebe a ilha, a circunda num aperto de amante, empresta-lhe o seu cheiro salino – e isso decompõe o meu tempo. O mar não me assusta, sei que me trará sempre de volta.

Penso como será quando os mais velhos partirem. De quem ouvirei falar do Corvo antigo, porque é também isso que me incentiva a querer trabalhar por este Corvo presente e agora meu. A ilha é digna disso – daqui advém a minha acalmia que permite criar. Morreu já o homem que nos dizia a todos que “o mundo não acaba aqui, começa aqui” – e a perda foi dolorosa e quase incompreensível o acto de descer à terra um coração que amava a sua ilha. Será igualmente brusco o sentimento quando desaparecem os outros, por isso sorvo em golfadas tudo o que me querem contar. Odete, Pedro, Celeste, José Maria, Raúl, Maria José, Agostinho.

Estar aqui é aprender aos poucos as tramas das Festas do Espírito Santo, sentir o cheiro do bodo de leite, as vozes em surdina que rezam o terço no Império ao abeirar da noite, beijar a coroa que passa pelas casas, saber quem bordou as pombinhas vermelhas que bailam na bandeira no topo do largo. Ir em busca da procissão e ver o olhar das meninas que se vestem de rainhas, ouvir a banda defronte à igreja num jeito de oferenda. Fazer parte dessa alegria.

Aguardo conseguir participar nas Festas de Nossa Senhora dos Milagres, num ano em que a festa seja completa. Ir pelas ruas colocar pétalas no tapete que as mulheres desenham e oferecem à santa – efémero, mas tão das mãos delas. Mãos que já me ensinaram tanto. É para mim quase poético o labor das mulheres corvinas, o seu acerto com os dias, a sua força. Aprendo com elas a não esmorecer, a prosseguir sempre, a tomar a dianteira da própria vida. 

O Inverno foi transposto, na sua chuva contínua, no seu vento que clamava nas janelas, no bramido espumoso da ondulação. Usa-se essa invernia para a imaginação introspectiva. Para os livros. Para a medição dos sonhos. É um Inverno atlântico que deixa um sabor a sal na boca. Espanta, mas apaixona. Quem atravessa esse tempo na ilha, atravessa tudo. Fica para tudo.

Tempo. Porque no Corvo existe tempo. As horas projectam-se nos dias como promessas desse tempo que se escapulia das mãos no furor de uma cidade que definha. E conseguir respirar. Não apenas esse acto físico que nos sustém, mas sim o acto quase mágico que permite o sonho. Pode ser apenas uma ideia encantatória, mas aqui, nesta ilha, sinto que o tempo expande o sonho.

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Por vezes, lá de longe perguntam o que se faz aqui tanto tempo no mesmo sítio. A resposta é fácil: vive-se. Abre-se o peito ao cheiro das hortênsias molhadas ainda da chuva tardia. Ao negro da pedra dos palheiros que povoam as terras acima da vila. Às vozes que passam defronte do pátio aberto à rua e que param para conversar no muro. À lenha crepitante do forno onde fervem as torradas e as memórias.  Abre-se o peito mesmo à evidência que aqui todos sabemos de todos – e isso não assusta, é apenas um resquício arquitectónico: janelas ante janelas nas canadas estreitas. Somos poucos, isso basta para nos olharmos.

Viver em acalmia permite admirar as variações da luz naquela rocha junto ao mar que miro daqui, permite estar a escrever este texto enquanto ouço chegar da sala os restos de uma música antiga que embala o outro vivente que comigo se deixa encantar pela ilha, o ombro onde me aninho e repouso. 

Os nossos livros estão a caminho do Corvo pelo mar alto e há nisso também poesia, páginas que chegarão com cheiro marinho. Reavivo as palavras de Natália Correia: “A partir de agora, se alguém me quiser encontrar, procure-me entre o riso e a paixão”. 

Procure-me na ilha.

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1981. Nascida perto do mar continental – distante e anónimo – foi depois preciso percorrer o caminho ilhéu para tornar o mar em uma coisa minha e cheia de deslumbre. Para trás ficam outros caminhos: Peniche - Lisboa, em volteios de fulgor efémero, num abandono de cidade grande; os desencantos de um Direito sempre torto; a busca da imaginação nas pequenas coisas. Depois e agora o sonho ilhéu.

Vânia Chagas é continental e vive no Corvo há um ano.


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia