A lição de geopolítica do Peter’s

Tomé Ribeiro Gomes
#Crónica

Quando ouvimos o termo “geopolítica”, pensamos imediatamente nas grandes questões do dia da política internacional. Pensamos em problemas como a rivalidade entre os Estados Unidos e a China, as bravatas militares da Rússia no Leste da Europa, ou as lutas pelo controlo de recursos naturais no Médio Oriente e em África. Vistas dos Açores, todas estas questões nos parecem distantes. 

Essa percepção reforça a dúvida que se instalou ao longo da última década sobre o papel dos Açores no mundo. Depois de um século XX em que as ilhas figuraram no grande xadrez da política mundial, depois do downsizing norte-americano da Base das Lajes e à medida que o Pacífico ganha peso como o oceano de todas as decisões, qual o significado geopolítico dos Açores hoje? O Peter’s Café Sport deu-nos recentemente uma preciosa ajuda à reflexão sobre este tema. 

Em Maio de 2020, no início desta longa pandemia e sob as mais estritas medidas de confinamento, centenas de veleiros encontraram-se presos do outro lado do Atlântico, impedidos de desembarcar nos Estados Unidos ou em países da América Central. Muitos escolheram fazer a travessia transatlântica de regresso às suas casas na Europa. Devido à pandemia, faltavam-lhes meios e tripulação profissional, mas o relógio pressionava: em breve começaria a época dos furacões no Oceano Atlântico, algo perigoso para estas pequenas embarcações, algumas delas tripuladas por famílias inteiras, crianças incluídas.

E é aqui que o famoso Peter’s Café Sport entra nesta história. O arquipélago, e particularmente a marina da Horta, no Faial, ofereceu a esperança de uma escala atlântica para quem contemplava ansiosamente esta travessia na sua pequena embarcação. Para o jornal The Guardian, os Açores revelaram-se “um farol de luz no Atlântico durante esta crise.” (Susan Smillie, “Long journey home: the stranded sailboats in a race to beat the hurricanes”, The Guardian, 12 de Maio de 2020).

Num momento em que ainda temíamos ser infectados com o SARS-CoV-2 através das compras que trazíamos do supermercado, a decisão de acolher estas pessoas na marina da Horta não deve ter sido fácil para as autoridades. É admirável pela coragem, pela solidariedade, e pelos resultados. Muitos velejadores no Pacífico não tiveram a mesma sorte, tendo-lhes sido recusado o acesso a múltiplos portos (Phil Taylor e Charlotte Graham-McLay, “Hundreds of sailors fear being stranded for Pacific storm season amid Covid border closuresThe Guardian, 7 de Setembro de 2020).

Os tripulantes não puderam desembarcar, mas com autorização do Capitão do Porto e apoio do Clube Naval da Horta, o Peter’s organizou um sistema de abastecimento e apoio às embarcações ancoradas na marina da Horta. Os navegadores contactavam o Peter’s por rádio, telemóvel ou e-mail, enviavam os seus pedidos, e o pessoal do Peter’s ia ao supermercado, vestia-se a rigor (fatos de macaco, além da máscara) e ia entregar as compras aos barcos com um semirrígido. Providenciaram assim água, comida, medicamentos e combustível, assim como reparações. Chegaram a apoiar assim 80 ou 90 embarcações por dia (Sara Sousa Oliveira, “"La résistance" açoriana ajudou centenas de navegadores proibidos de desembarcar”, Expresso, 7 de Dezembro de 2020).

ⓒ Peter's Cafe Sport
ⓒ Peter's Cafe Sport

Álvaro Monjardino, em duas conferências publicadas em 1982 no Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (“A Região Autónoma dos Açores nas Suas Implicações Internacionais”, Boletim, Vol. XL) distingue entre as funções estratégicas que colocam a região numa postura de passividade, e aquelas que resultam de uma postura de actividade. A localização das ilhas no Oceano Atlântico é um acidente geográfico, e como tal é um elemento da importância estratégica dos Açores em que a região tem um papel passivo. 

O que podemos fazer por nossa iniciativa é aproveitar melhor ou pior esta localização. Habituados a olhar para a realidade internacional como consistindo apenas nas grandes questões dos noticiários, nem sempre nos apercebemos dos factos mundanos que possibilitam o dia-a-dia deste mundo globalizado. Alguns destes factos só se tornam visíveis quando acontece um evento improvável. Exemplo: um gigante porta-contentores entope o Canal do Suez, lembrando ao mundo a importância desta via de passagem para o comércio global e para a nossa dependência do transporte marítimo, que representa cerca de 90% de todo o comércio de bens. 

Esta pandemia que hoje vivemos é outro exemplo de uma calamidade reveladora. Entre as muitas lições a retirar está este detalhe sobre a centralidade dos Açores. Por muito que a tecnologia evolua, e com ela a travessia do Atlântico se torne facilitada, há ainda uma rede de portos que servem uma comunidade de veleiros. E nela os Açores ocupam um ponto nevrálgico no Oceano Atlântico. Podemos extrapolar para questões de segurança. Imagine-se a importância que os Açores não terão na vigilância, na fiscalização e no socorro nas extensas águas da Zona Económica Exclusiva, atravessadas que são diariamente por navios mercantes e de recreio, mas também por navios fora da lei, como aqueles envolvidos no tráfico ou na pesca ilegal. 

Estas funções de segurança marítima não são uma novidade para a Região Autónoma dos Açores mas, dada a nossa fixação em acontecimentos mais mediáticos, elas podem passar despercebidas. E assim perdem valor, porque as histórias que contamos a nós próprios têm uma importância fundamental na definição do nosso papel no mundo. A pequenez auto-imposta torna provável que nos deixemos novamente controlar pelas características passivas da nossa geografia. Entre outros, temos um exemplo na 1.ª Guerra Mundial, quando em 1917 a negligência na defesa das ilhas expôs Ponta Delgada a um ataque por um submarino alemão, com vítimas mortais, a que só um navio norte-americano conseguiu pôr fim.

Nesta difícil tarefa de alavancar o nosso potencial geográfico e torná-lo num activo que funcione em nosso benefício, temos uma lição a aprender com o Peter’s. É que não se limitaram a dar o apoio e a criar largas dezenas de novos embaixadores dos Açores (até houve um casamento de navegadores na marina, com braçadeiras a servir de alianças, conta o Expresso). Habituado a projectar a marca em contexto internacional, o Peter’s transformou o seu papel fulcral para estes velejadores num momento histórico da empresa, que já é muito mais que um bar com uma vista agradável. 

O movimento que apelidaram de “la résistance” recebeu um símbolo (um barrete azul, vermelho, branco e amarelo) e uma página de internet dedicada à partilha de histórias e fotografias dos marinheiros que apoiaram. Não fosse o Peter’s uma empresa, e chamar-se-ia a isto projecção de soft power, em linguagem de política internacional. Este é o poder suave, por oposição ao poder duro das armas ou do dinheiro; é o poder que as nações ganham e exercem através da sua influência enquanto exemplo a seguir numa determinada matéria.

ⓒ Mateus Ribeiro Gomes
ⓒ Mateus Ribeiro Gomes

A relevância geopolítica dos Açores continua a passar pelo lugar ocupado pela região no mosaico global. Há funções militares e científicas para as quais os Açores continuam a ser relevantes. Provas disso são a permanência da Base das Lajes, os novos Atlantic Centre for Defence Capacity Building e AIR Centre, assim como todo o trabalho que tem sido feito para colocar as ilhas no mapa das infraestruturas do espaço. 

Além de tudo isto, também devíamos reconhecer a nossa importância para questões menos espetaculares, mas essenciais para que o mundo continue a girar, seja a protecção ambiental dos nossos mares e dos nossos recursos terrestres, seja a nossa vocação para receber e apoiar a comunidade náutica do mundo. O passo seguinte é saber contar essa história ao mundo, transformando questões como a protecção ambiental, a segurança marítima, e o nosso talento para bem-receber em factores de soft power. Como tão bem soube fazer o Peter’s.

*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia

Tomé Ribeiro Gomes nasceu na Terceira, em 1993. Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa e mestre em Governance, Leadership and Democracy Studies pela Universidade Católica Portuguesa, é doutorando em História, Estudos de Segurança e Defesa no ISCTE-IUL, no âmbito do qual está a trabalhar o tema da geoestratégia dos Açores, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia.