Alguns apontamentos sobre a Flora, Fauna e Insetos dos Açores

Kathleen McCaul Moura
#Crónica

Aquilo que mais nos fascina nos Açores é a sua flora e fauna únicas. O meu marido é do Brasil e eu de Inglaterra. Já vivemos algum tempo nos dois países, mas, na verdade, um de nós sentia sempre saudades de casa. Aqui temos o que eu nunca imaginaria que fosse possível: de Inglaterra, as mesmas estradas cheias de curvas, campos verdes e vacas; do Brasil, as mesmas palmeiras, calor, chuva e grilos que cantam nas noites cerradas. É como se os nossos sangues se tivessem misturado aqui. E, depois, há o Oceano. Os nossos filhos são uma mistura de brasileiros e ingleses, irlandeses e portugueses; lugares distantes, mas com o mesmo Atlântico a banhar as suas fronteiras. Todos os nossos antepassados olharam para o mesmo horizonte azul. O mesmo que vemos agora. Pergunto-me frequentemente se o meu marido teria uma família de piratas. É moreno, tem um nariz grande e aquilino e um rosto comprido que se parece com os de outros tempos – o tipo de rosto que poderia estar no mar durante meses a fio, com negócios em todos os portos. 

Dissemos a nós próprios que íamos ficar nos Açores um ano. Era apenas uma experiência, uma aventura na natureza da qual regressaríamos. E, de repente, à medida que se aproximava a hora da partida, apareceu-nos uma velha casa com uma pequena quinta. Neste jardim havia videiras, magnólias, arbustos de flores de sabugueiro, abacateiros, goiabeiras, nespereiras, pereiras, limeiras, laranjeiras, figueiras, bananeiras, diospireiros, mangueiras e diferentes tipos de carvalhos. “Aqui podíamos estar em Inglaterra”, segredei ao meu marido, segurando com cuidado uma bolota na minha mão. “Podíamos estar em qualquer lugar”, respondeu ele em voz baixa.

Em poucas semanas, a casa era o nosso lar, mas rapidamente nos apercebemos que muitos outros já lá viviam há mais tempo do que nós. Não éramos os primeiros e não seríamos os últimos. Da vegetação, vieram todos os tipos de visitantes locais. As formigas foram as primeiras a chegar – uma grande quantidade delas a abrir caminho de e para os recantos e fendas do antigo chão de basalto. Dirigiram-se para o quarto dos nossos filhos e revelaram os seus segredos: bolachas e frutas escondidas debaixo das camas, ficaram pretas de um momento para o outro por causa das minúsculas criaturas. Comprámos veneno para pôr nos pequenos ninhos. Sentimo-nos mal com isso, mas fizemo-lo na mesma. O segundo grupo de visitantes foram as ratazanas pretas. Os nossos novos vizinhos disseram-nos que precisávamos de gatos e deram-nos dois gatinhos – um laranja e um cinzento, ambos tigrados. Chamámos-lhes Ginger e Jazz. Não gostam de ir lá fora. Não servem para caçar ratos, mas fazem parte da família.


O nosso terceiro grupo de visitantes, depois das formigas e das ratazanas, foram as baratas. Nunca gostei de baratas, mas parece que os meus traumas relacionados com a pandemia passaram a ser os testes à Covid-19 e as baratas. Quando estou perante qualquer uma destas coisas, perco o controlo. Grito, choro, fujo e frequentemente as lágrimas correm-me pelo rosto abaixo quando me deparo com um teste à Covid-19. Com baratas, na maioria das vezes limito-me a gritar e a ficar paralisada e a gritar e a ficar paralisada e a gritar. Passei este comportamento para as crianças. Elas fazem-no em português. Gritam BARATAAAAAAAAA, BARATAAAAAAA, BARATAAAAAA. Contudo, este pavor permitiu-nos criar laços com outro dos nossos novos vizinhos que nos disse que a mulher dele desmaia quando vê baratas. Ele recomendou-nos o Biokill. O Filipe comprou duas garrafas e borrifou-as por toda a casa e as baratas começaram a aparecer mortas de pernas para o ar. Estamos na nossa sexta garrafa e o Filipe até já descobriu a versão azul extra forte.

Chegámos agora a uma espécie de tréguas com os nossos novos amigos insetos e o meu marido aceitou, com grande entusiasmo, a gestão deste terreno em constante crescimento. No início, achei isto estranho. Ele cresceu num apartamento no meio da populosa megacidade latino-americana de São Paulo. Inesperadamente, o meu cunhado envia-nos uma pilha de ficheiros de cassetes de vídeo antigas que ele tinha digitalizado e pede ao Filipe para que os veja só quando se sentir bem. Foram feitos pelo seu pai, que morreu de forma muito trágica. Abrimo-los cuidadosamente. É a primeira vez que vejo bem o pai do meu marido. Todas as fotografias dele tinham sido guardadas. É fascinante. Há um vídeo em particular onde o pai parece muito feliz. É um filme do pequeno terreno que a família comprou nas colinas cobertas de erva nos arredores de São Paulo, onde construíram uma casa de madeira. Ele manuseia a câmara lentamente, mostrando os vegetais que acabara de plantar, as árvores de fruto que o Filipe diz estarem enormes hoje em dia. Uma mangueira e uma limeira pequenas, tal como as que o meu marido tanto se orgulha agora de ter. Afinal, talvez o Filipe tenha vindo de uma família de agricultores e não de piratas, como eu sempre pensei. Vimos, de mãos dadas, vezes sem conta aquele filme da flora e fauna longínquas que tanto se parecem com as do nosso novo quintal até ao momento em que vi uma barata a subir a parede e comecei a gritar.

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Kathleen McCaul Moura é escritora e jornalista. Viveu e trabalhou em Bagdade, Caxemira, Deli, Mumbai, Doha, Londres e São Paulo e vive agora em São Miguel com os seus quatro filhos e o marido. É autora de dois romances e editora da aclamada antologia Megacity. Os seus artigos não ficcionais já foram publicados em revistas como a Granta, The London Review of Books, The Guardian e a BBC. Está a terminar um doutoramento em Escrita Criativa na Universidade de East Anglia.