A Belavista

José Lopes de Araújo
#Crónica

O que no meu bairro se via da janela da minha casa

Como quase todos nós, no último ano e meio, passei grande parte do tempo confinado, mais ou menos fechado em casa, limitado por paredes e vidraças, protegido da rua por um elevador, emprateleirado numa de tantas torres, qual pombal gigantesco que enche esta cidade de Lisboa.

Ora, quis o destino que esta minha segunda e derradeira emigração em Lisboa situasse a minha casa e o meu bairro atual, não próximo de um porto ou de um Aeroporto onde outrora vivera, mas seja Deus louvado, junto de uma das principais estações de caminho de ferro do país, coisa que como se sabe nunca houve nas nossas ilhas. Vai daí, na saleta anexa à cozinha onde todos os dias tomo bem cedo o pequeno-almoço, vejo da minha janela o emaranhado das linhas férreas, onde fico a ver literalmente passar os comboios…

Ao longo destes vinte anos em que aqui vivo, aprendi-lhes os horários e os destinos, distingo o Intercidades do Alfa e as carreiras suburbanas e até já tenho saudades do Lusitânia Expresso que já desapareceu, mas que durante anos passava sincronizadamente à hora do meu pequeno-almoço, vindo de Madrid, com as suas carruagens brancas Espanholas e o Wagon-restaurante de candeeiros ainda acesos, onde viajantes estremunhados tomavam sobre rodas o mesmo que eu à minha mesa, o bom café da manhã. 

No primeiro confinamento, na verdade o mais doloroso, (eu só vim à rua ao fim de mês e meio), não se via vivalma na minha avenida, outrora cheia de turistas e autocarros. Desapareceram os aviões do céu de Lisboa e até se esfumaram das linhas os comboios, talvez receosos também do vírus e sem ninguém para levar a lado algum.

Entretive-me então a olhar a espada e as agulhas, hoje já sem agulheiros (curiosamente em francês controlador de tráfego aéreo por analogia diz-se aiguillieur du ciel) nesse fenómeno para mim durante anos misterioso que constituía o mudar a direção dos comboios, através do equipamento conhecido por amv (aparelho de mudança de via). Ao olhar as linhas, às vezes vejo um comboio vir com várias carruagens, já em marcha lenta a aproximar-se na linha número um e eis que de súbito, contra a minha expectativa, muda de direção e segue duas vias abaixo, torcendo o corpo todo como cobra fugidia escapando de ameaça. Tento adivinhar-lhes o percurso sobre as dormentes madeiras das linhas, o aço brilhante e reluzente, os jacarés (tipos de cruzamentos) móveis, desenhos estranhos e caprichosos que são dirigidos por mão invisível. 

Fotografia de Manuel Oliveira
Fotografia de Manuel Oliveira

Ora, esse olhar o mundo da janela e o sentimento de confinamento desespera qualquer um, mas creio que perturba mais os meus amigos continentais. Nós, ilhéus, habituámo-nos um pouco a estarmos naturalmente confinados. Nascemos confinados. Confinados a vivermos na freguesia onde nascemos, na vila, no concelho, no máximo na ilha, o nosso único espaço durante muitos séculos. Esse confinamento era quebrado radicalmente apenas pela aventura da emigração, em que passávamos do micro para o macro, ou seja, da ladeira da Ribeira Quente, cinco horas depois, para as escadas rolantes do JFK de New York.

Recordo-me de estar em férias com a família na casa das Feteiras em São Miguel e o velho Jacinto Carvalho, já com perto de setenta na ilharga (como dizia), vinhateiro da casa e a quem eu queria tanto como a um avô, estar numa excitação, porque naquele domingo ia pela primeira vez de camionete em excursão às Furnas, onde nunca fora, apenas a cinquenta quilómetros de distância e na mesma ilha. Estávamos no final dos anos sessenta. E já estava eu a trabalhar na televisão, portanto já depois do 25 de Abril, o meu camarada de redação Paulo Martinho entrevistou uma idosa, sua conterrânea do vale das Furnas, que nunca tinha visto o mar, ali apenas a três quilómetros de distância, na Ribeira Quente. Maior confinamento não é possível. Ilhéu dentro da própria ilha.

O Açoriano tem, pois, na janela de casa a vista para o seu mundo. Da minha janela da ilha eu sempre vi o mundo inteiro.

Quando criança, a minha janela no Bairro da Belavista dava para o Terminal do Aeroporto de Santa Maria. Não obstante, o ambiente cosmopolita da aviação do pós-guerra, a ilha ficava também entregue a si própria, quando o último avião descolava e o Terminal do Aeroporto como por magia se esvaziava ou quando as tempestades frequentes nos deixavam sem comunicações com o exterior durante dias a fio.

A minha casa ficava de frente para as pistas e num tempo em que não havia televisão nem internet, para além da leitura, o meu entretenimento era da minha janela observar o aeroporto. Reconhecia os aviões e os seus vários tipos e modelos, ainda no ar e à distância sabia as rotas de aproximação pela direção do vento, pelas cores esbatidas do leme de cauda e, bem alto, sabia de que companhia aérea se tratava, observava as manobras de aterragem, de taxiway lento, cada movimento do pessoal de terra afanosamente rodeando o pássaro grande e cansado, calçando-o, ligando-o por todos os lados, o gerador, o carro de combustível, as escadas. Tudo se repetia maquinalmente com gente em viagem de um lado para o outro do Atlântico, logo manhã cedo, a meio da noite ou ao fim da tarde, e a minha imaginação ia com eles quando descolavam, deixando um rasto de fumo e vapor até parecer um ponto no céu distante. 

Quando fui viver para Ponta Delgada, o meu quarto dava para o porto. Era um quarto grande e iluminado, ficava num segundo piso da casa do Largo de Camões e tinha três janelas, todas viradas ao mar, com cujo som adormecia em noites de tempestade.

Daí, sentado à mesa onde estudava, assistia à saída do barco do piloto da barra, muitas vezes com o mar agitado, logo seguido do rebocador, via as manobras de atracagem do Angra e do Funchal, o apitar do navio, o movimento na doca. Outras vezes, os belos paquetes de turismo que saíam à noite todos iluminados, com orquestras a tocar no deck exterior e a minha imaginação ia de novo com eles por aquele mar de prata fora, em noites cálidas do verão da ilha. Dali via o porto todo, do farol ao porto de pesca e ao Clube Naval, e controlava-lhe os movimentos, aqueles de quem chegava e de quem partia e até dos cargueiros, o gado vivo exportado e dependurado dos guindastes, vacas em troca de automóveis que, pela mesma via e pelos mesmos guindastes, chegavam então à ilha. Todo o ilhéu que me lê sabe como é importante para outro ilhéu essa atividade de ver chegar e ver partir.

Da minha casa na Belavista, em Santa Maria, onde passei toda a minha infância, via o Aeroporto, o mar para lá das pistas e no horizonte todo o perfil da ilha de São Miguel. 

Quando o tempo estava nítido, anunciando a vinda de mau tempo, via-se bem o maciço das Sete Cidades, depois a ilha sumia-se no mar na zona de Ponta Delgada para se reerguer logo de seguida na serra da Barrosa, continuando pelo cone vulcânico das Furnas e pela parte mais montanhosa da ilha até ao Nordeste. Era a nossa companheira. Creio que de São Miguel, excetuando talvez os Vila-Franquenses, irmãos pelo barro que vinha da ilha de Gonçalo Velho, poucos se davam ou darão ao trabalho de olhar para Santa Maria. Mas Santa Maria sempre esteve ligada a São Miguel. Até as Casas de Comércio que enchiam Vila do Porto dos anos sessenta tinham o nome das suas homónimas de Ponta Delgada (o A.Frazão, a Rosa d’ouro e outras mais) que para lá tinham ido no tempo dos americanos em busca da sorte e dos dólares. Os estudantes iam também para o Liceu de Ponta Delgada terminar os estudos, prolongando essa ligação. E quando a doença aparecia, ia-se para São Miguel. O Ponta Delgada e os Pareces encarregavam-se da ligação marítima entre as duas ilhas e a SATA ligava-nos primeiro a Santana e depois à Nordela, com os seus Doves de nove lugares e os Dakotas de 25 passageiros.

Creio que foi o Tenente Coronel José Agostinho, distinto cientista Açoriano que cheguei a conhecer e a entrevistar, que disse que só São Jorge, estando no meio, estava sozinho. E é verdade. Santa Maria faz par com São Miguel, a Terceira sempre esteve ligada à Graciosa, naturalmente o Faial ao Pico e as Flores vem de mão dada com o pequeno Corvo. Este emparelhamento das ilhas sempre nos ajudou a suportar o isolamento, em especial às ilhas mais pequenas e menos populosas. Somos várias janelas do mesmo bairro. E essa vizinhança torna-nos mais próximos e mais fortes na nossa pequenez. 

Este confinamento a que a pandemia agora nos forçou não assusta, pois, o ilhéu, para quem o tempo e os detalhes do quotidiano têm outro tempo e outra dimensão e para quem a reflexão que o isolamento proporciona, no olhar da sua janela, leva a imaginação para lá dos comboios, barcos e aviões numa viagem que dura uma vida…

Lisboa, setembro de 2021 


José Lopes de Araújo
Jornalista, advogado, antigo diretor da RTP-Açores e atual diretor de Relações Internacionais da RTP