Cultura, não, com licença

Leonardo Sousa
#Crónica

Herbert Read sugere a abolição da palavra: para o inferno com a cultura! Já não é mais do que uma mercadoria, o que não pode ser separado das operações políticas e económicas. E, paradoxalmente, atomizou-se. Gonçalo M. Tavares: “Reduziram os ensinamentos essenciais de 10 mil páginas / a 10 mil dólares”. Dúvida grega: em que medida um produtor musical é mais “agente cultural” do que um produtor de sapatos? Para o sentido de cultura, é tão legítima a gastronomia quanto a dança, tão necessária a política quanto a empresa. Porém, ele não é cada uma dessas coisas em si, mas sobretudo o propósito de comunicação entre todas as partes, a favor do aperfeiçoamento democrático da sociedade. Pode entender-se como um conjunto de dinâmicas que ocorrem entre o mundo individual e subjectivo e o mundo colectivo, material e histórico; entre o mundo colectivo, material e histórico e a criação de sentido, finalidade. Não precisamos da palavra, precisamos do seu significado.

Esse significado instaura uma “tensão entre fazer e ser feito” (Terry Eagleton). Grande parte do que somos é o que nos falta. As artes são o campo onde a convulsão pode ser contínua, a indagação absoluta e devastadora. Em “Talho”, conto de Maria Brandão (Avenida Marginal, Artes e Letras, 2019), o olhar simultaneamente estrangeiro e residente da protagonista obriga-nos a confrontar a “existência de um paraíso no meio do Atlântico” com os seus “verdes desbotados, as paisagens banais, as hidrângeas queimadas, as termas duvidosas, a gastronomia gordurosa, a cultura dormente, os habitantes selvagens” e com uma “cidade raquítica com mais carros do que o centro de Estocolmo”. Uma peça de arte literária que é ao mesmo passo uma peça de crítica cultural, encetada para nos fazer olhar a partir das fendas e dos golpes, situando-nos na tensão entre o que o território é e o que pode ser, denunciando-lhe em poucas linhas um rumo abstinente, que não coloca obstáculos reais às falências na educação e na cidadania, à economia faminta, à visão autofágica do território, provinciana, mesquinha, e, em última análise, trágica como “um Titanic de quatro rodas”. 

A cultura é “dormente”, porque, como “uma rotunda congestionada, sem sentido definido”, não comunica com as vias sobre as quais se expande, e estagna. À imagem e semelhança do mercado, transformou públicos e cidadãos em consumidores de mais um serviço ou bem. Não temos falta de consumidores – vide festa branca. As artes precisam de reencontrar o seu espaço e recriar os seus públicos. Um público participa na própria obra, recria-a, amplia o seu significado, perpetua-a, inscreve-a na consciência colectiva. Faz dela pertença comum. Faz muito mais do que consumir, entreter, ou prover soro a uma qualquer apatia.

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A mátria de Natália Correia convoca simultaneamente a teologia mística de Joaquim de Fiore e a mitologia pagã de Pessoa. Enfoca o culto do espírito santo como um mito fundador da cosmovisão açoriana, vocacionando-a, par a par, para o conhecimento de si mesma e para a religação com o exterior. Associa-lhe a celebração do feminino, fonte de energia criadora que conduz uma revolução cultural por via da fraternidade, absorvendo o melhor das suas mundividências e transformando-as em propriedades da sua natureza e identidade. Confirma a originalidade e o poder inventivo da comunidade, mas impele-a a materializar esse poder. 

Toda a estratégia cultural que seja menos do que devolver o poder às pessoas está reduzida à métrica financeira. Ao contrário da linguagem do mercado, que separa e mecaniza, as linguagens artísticas aproximam as pessoas. Activam consciências, razões, discórdias, novas dúvidas. Cabe-lhes um papel central na democratização da cultura. A sua inserção em sectores económicos, como no turismo, pode não só contribuir para a rentabilidade da região, como para repensar a sustentabilidade da relação economia-ecologia a longo prazo. As suas potencialidades pedagógicas, terapêuticas, reintegradoras dizem-nos que podemos descentralizar as suas estruturas, colocá-las em itinerário, agir continuamente nos planos do ensino, da justiça, da acção social, da saúde, obrigando os canais públicos a comunicar entre si, contribuindo para neutralizar a distância entre os discursos das artes e os públicos, entre as instituições e os indivíduos, entre o território e o habitante. 

Apelar a uma sensibilidade cidadã que se indigne com a falta de sentido estético dos seus rumos – eis uma missão cultural. Gerar públicos exigentes, públicos co-criadores da obra, mas também co-criadores de uma identidade colectiva. Própria, mas aberta. Fluida, mas com trajecto e narrativa. Uma cultura que nos vivifique, mais do que “unir-nos aos mortos da literatura”, mais do que ser mero “marcador turístico” onde habitamos “por uma questão de inércia climática” (Nuno Félix da Costa). E, sobretudo, uma cultura que não se entretenha a sarar golpes fundos com pensos rápidos.

*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia