Delineando o meu Bairro: Os Açores sem limites.

Miguel Moniz
#Crónica

Onde fica o meu bairro? Eu passei uma grande parte da minha vida a viver em vários lugares e sinto-me em casa em alguns deles. Isto inclui Providence e Lisboa, onde vivi a maior parte da minha vida e também incluo os Açores da minha família, onde vivi durante alguns anos. No entanto, quando penso no meu bairro açoriano, não o vejo como uma localização geográfica, mas como uma ideia. 

Admito que parte do meu bairro fica no sítio em que nasci e onde fui criado, o lugar a que sempre regresso: Falmouth, Cape Cod, Massachussets. Basta dizer a alguém de Falmouth de que rua sou em Hatchville e sabem exatamente a que parte de Sandwich Road pertenço. Mas essa não é a história completa, pois - tal como quase toda a gente que conheço lá - toda a minha gente veio dos Açores. Em Falmouth, os Açores faziam tanto parte da cidade como o chão em que eu caminhava, mesmo nunca lá tendo estado.  

Cresci na parte açoriana e cabo-verdiana da cidade, numa casa equidistante dos principais clubes de imigrantes: Saint Anthony’s Hall (que foi extinto) e o Cape Verdean Club e o Portuguese American Association. Apesar de ser membro destas duas organizações, passei muito mais tempo em eventos da IDES de East Falmouth, uma Irmandade do Espírito Santo da Terceira (à qual ainda pertenço) e antes pertencia ao “clube” da maioria dos açorianos que vieram de sítios lusófonos para Falmouth - a igreja Católica Saint Anthony’s (organização que deixei há muito tempo). 

As primeiras organizações açorianas na minha cidade (anteriores até à igreja) foram as sociedades açorianas da Irmandade do Espírito Santo. Existe uma ligação íntima entre Falmouth e os Açores há cem anos, demonstrada pelo facto de estas organizações continuarem a crescer e a desenvolver o Weltanschauung dos imigrantes, dos seus filhos, e até dos não-portugueses da minha cidade. Pode não ser uma relação simétrica, mas arde fugazmente em nós que somos de Falmouth. 

Quando eu era criança, o festival montado pelos terceirenses (fundado em 1984) era conhecido como “Festa Greenhorn.” Para quem não sabe, “greenhorn” é um termo usado para classificar os imigrantes que foram para os Estados Unidos na onda lançada pela erupção do vulcão dos Capelinhos, a maioria deles açorianos. Houve momentos desse período em que havia mais gente nascida nos Açores a viver na América do Norte do que em todo o arquipélago. Quando eu nasci, havia sem dúvida mais gente dos Açores a viver em Falmouth do que na maioria das vilas dos Açores. O nome “Festa Greenhorn” separava esta nova organização das mais antigas Irmandades do Espírito Santo do Upper Cape, fundadas por imigrantes açorianos no final do século XIX, e que depois foram sendo geridas pelos seus descendentes nascidos na América. 

O objetivo de fundar uma associação social voluntária coletiva é delinear fronteiras à volta dos seus membros e atividades, servindo ao mesmo tempo para definir quem pertence ao lado de fora. Para os que usavam esse nome, “Festa Greenhorn” separava as organizações, os seus membros, e os fins-de-semana em que se davam as festas. Se falarmos honestamente sobre os conflitos entre migrantes e os esforços de mobilidade social das gerações mais antigas numa América hostil a imigrantes de classe operária, tal nome também era uma tentativa por parte daqueles que já tinham nascido nos EUA de se distanciarem racialmente dos que tinham chegado mais recentemente. Eram os Açorianos com quem eles não se queriam dar nem queriam ser associados a eles, pelo menos na opinião dos não-portugueses. 

Hoje em dia, ninguém diz “Festa Greenhorn” e, numa reviravolta interessante que encapsula parte daquilo a que me refiro neste ensaio, agora é conhecida como a “Festa Açoriana.” Essa mudança deve-se, em parte, ao facto de os membros das duas principais organizações do Espírito Santo se misturarem bastante: os imigrantes de gerações anteriores participam e ajudam-se mutuamente e, ao mesmo tempo, trabalham noutros clubes da cidade. Porém, chamá-la de “Festa Açoriana” reconhece que se trata de um festival fundado pelos imigrantes que o gerem e em vez de se distanciarem dos “greenhorns” estas gerações mais antigas parecem acolhê-los, encontrando objetivos comuns ao abrir caminho para moldar e definir o seu bairro. Através destas mudanças das definições através dos períodos históricos e momentos políticos, procuram colocar-se todos do mesmo lado da fronteira. 

Mas onde está essa fronteira, e mais especificamente, que está a ser definido à sua volta?  

Mapa do Atlântico, por Carys Marderosian
Mapa do Atlântico, por Carys Marderosian

Num dos seus estudos efetuados na primeira década do século XXI, o antropólogo João Leal pediu a crianças filhas de imigrantes dos Açores, em Massachussets e Rhode Island, que desenhassem um mapa do arquipélago no Atlântico. Na realidade, para navegar dos Açores até à costa sul de New England a distância mais curta é entre Cape Cod e Santa Cruz das Flores: são 3300 km de distância em linha reta. Por outro lado, a distância mais curta entre os Açores e Portugal continental (de Santa Maria ao Cabo da Roca) é de apenas 1400 km. Mas não foi assim que as crianças desenharam os mapas. Na visão delas, inverteu-se a distância relativa entre as ilhas e os continentes e desenharam os Açores muito mais perto de New England, mesmo junto à costa, em alguns casos. Para elas, os Açores não se encontravam na realidade física da sua geografia, mas no lugar onde os experienciavam, na sua imaginação. Por outras palavras, as crianças desenharam os Açores como parte do seu próprio bairro.

Enquanto trabalhava num projeto antropológico em parceria com as Irmandades do Espírito Santo em New England, apercebi-me que outras pessoas das comunidades de New England, fundadas por Açorianos, traçaram linhas semelhantes. Parte da equipa presenciou as cerca de 70 festas do Espírito Santo na região e fez um estudo detalhado, incluindo a recolha de dados básicos sobre as relíquias pertencentes a cada uma das Irmandades. Estão incluídos registos das várias coroas de prata usadas por cada sociedade, um elemento central do desfile socio-religioso. Tive uma conversa sobre as coroas da Irmandade com Fred Sousa, descendente dos fundadores e um dos principais oficiais da Sociedade Portuguesa do Divino Espírito Santo Inc., em Stonington, Connecticut (uma das maiores e mais antigas festas de New England). Segundo Fred, a coroa mais antiga da sociedade data de 1914 e há outra que data dos anos 20, ambas trazidas dos Açores pelos migrantes originais que se estabeleceram em Stonington. Também me falou, com orgulho, de uma terceira coroa oriunda dos Açores, que tinha sido encomendada nos anos 60 por um membro da sociedade que queria doar uma réplica maior da  primeira coroa para comemorar os colonos açorianos originais (parte de uma polémica que criou rivalidade entre os açorianos e a sua festa e outros imigrantes recém-chegados de Portugal continental e as suas celebrações da Nossa Senhora de Fátima apoiada pelo Estado Novo).

Na sua exuberância nostálgica (e política) para criar uma versão maior que a original, a construção da réplica não contou com as diferenças estruturais necessárias para suportar o peso duma coroa maior. Criada com o mesmo número de suportes que a pequena coroa original, a arquitetura instável tornou a réplica mais pesada, trémula e propensa a colapsar, nada prática para as cerimónias, pelo que deixou de ser usada. (Uma boa metáfora para o que acontece quando se privilegia o saudosismo em detrimento da funcionalidade). 

Pedi ao Sousa que me desse mais informação sobre a coroa e as suas origens, perguntei sobre o fabricante, etc. Disse-me que não se lembrava do nome da oficina ou do mestre que a fez, mas tinha quase a certeza de que o prateiro era “uma loja na Columbia Street”. 

Anotei tal informação diligentemente e, antes de passar à próxima pergunta numa longa lista, reli o que tinha acabado de escrever e pensei: “Espera aí! Columbia Street?” Tentei esclarecer a minha confusão e perguntei “Disseste Columbia Street? Queres dizer Columbia Street em Fall River?” - A célebre rua que passa pelo centro cultural, residencial e comercial da grande população açoriana de Fall River, Massachusetts - “Fred, não disseste que a coroa tinha vindo dos Açores?” 

O Sousa respondeu: “Dos Açores, Fall River, Portugal, the old country, é tudo a mesma coisa.”

Aqui estava mais um bairro açoriano emancipado da geografia delimitada. Os contornos desenhados de um imaginário das suas memórias, recontados numa recordação reciclada. Um bairro formado pelas práticas culturais transportadas e transformadas pelos imigrantes e seus antepassados. Tais práticas podem ou não ainda existir nos Açores, mas quando existem, frequentemente, integram-se em contextos decididamente diferentes. Este é um bairro açoriano, com um ethos desincorporado, estendido por topografias pelos que partiram, guardado religiosamente por muitos que, como Fred Sousa, nunca sequer pisaram as ilhas. 

Se usarmos um pouco de imaginação, este bairro não é um lugar fixo porque as pessoas que o habitam, mesmo as que nunca saíram da sua terra, não são sedentárias. Todos vivemos em séries de confederações e comunidades que se sobrepõem, com ligações a lugares e pessoas que os nossos vizinhos não têm, e é por isso que podemos desenhar a silhueta de tais bairros em pinceladas expansivas interligadas. Trazem-se para casa ligações a (e experiências e sensibilidades de) outros lugares com a mesma facilidade com que se exportam as locais. Cada vez que isso acontece, redesenham-se as fronteiras à volta do nosso bairro.

Para usar as metáforas pelas quais vivemos no trabalho dos linguistas George Lakoff e Mark Johnson, James Fernandez escreve sobre como entendemos o que existe na escuridão ao fundo das escadas. Adaptamos criativamente as metáforas conhecidas e reformulamos experiências antigas para “predicar sobre o incipiente” e, cognitivamente, construir novas categorias com as quais contemplamos sentido. Em termos práticos, estas metáforas e as conexões que elas engendram permitem-nos expandir as fronteiras desenhadas à volta do nosso bairro.

Uma vez, fui de Portugal aos Estados Unidos com uma banda onde tocava, chamada Farra Fanfarra, e que costumava atuar entre Lisboa e Sintra, para tocar em vários festivais, clubes, e espetáculos universitários, numa tour de duas semanas por Massachusetts e Rhode Island. Vários centros de estudos portugueses em New England ajudaram a financiar a digressão, incluindo o LusoCentro da Bristol Community College, em Fall River, onde éramos a atuação principal no “Dia da Língua Portuguesa”, um evento com um público de cerca de 500 alunos do ensino secundário, a maioria deles de famílias açorianas lusófonas.

Quando marcámos o espetáculo, pediram-nos uma lista da “música portuguesa” que tocávamos. O que mais se aproximava era uma versão do êxito “Wegue Wegue” dos Buraka Som Sistema, uma canção que esticava a definição que os organizadores tinham em mente quando nos perguntaram sobre “música portuguesa”. Farra Fanfarra já atuou em espetáculos internacionais e ganhou competições internacionais representando Portugal. No entanto, nunca tínhamos sido confrontados com o que definia a banda como “portuguesa” da forma que os organizadores queriam, apesar de, mesmo assim, nos terem convidado a atuar. 

Ao contrário da situação em várias comunidades imigrantes, Farra Fanfarra não teria liberdade artística se estivesse limitada por definições rígidas do que é, ou não, música portuguesa. A atuação da banda, sem dúvida, expandiu o conceito em New England. Definir o contorno de um bairro à volta de expressões de identidade ortodoxas acaba por ser contraproducente e extremamente limitativo. Este tipo de mentalidade é perpetuado pelos que ruminam sobre as comunidades migrantes açorianas usando a cultura como um objeto estático e não um alvo criativo dinâmico, chegando a epifanias menores e clichés, lamentando o efeito das “mudanças geracionais” e a “perda da cultura”. Tanta conversa sobre práticas “tradicionais” que têm de ser “preservadas” em lugares como New England, Califórnia, ou Canadá - como se não pudesse existir um bairro açoriano sem ser idêntico ao que era há 100, 50, ou 30 anos. Para não falar que os próprios Açores mudaram nos últimos 30, 50, 100, ou até 5 anos. Nada disso faz sentido. 

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Um bairro não se define nas linhas ortodoxas de um conjunto específico de práticas culturais, ou pela forma como os nossos antepassados construíram as próprias identidades. Os imigrantes usam o passado como ponto de referência ao construir o conceito que têm do seu bairro, mas o passado também inclui as suas experiências de onde aterraram e dos mundos que criaram desde a sua chegada. O único lugar em que o bairro não muda é na imaginação dos que partiram e não voltaram ou dos que, tendo regressado, se veem limitados pelas expetativas ou chocados pelo crescimento.

Trata-se de um bairro definido por conexões expansivas e difusas de contactos vividos e memórias partilhadas, de experiências e conhecimento rearticulado num presente dinâmico. Este bairro situa-se tanto nas ilhas reais no oceano como nas ilhas metafóricas polvilhadas nos vários continentes. O arquipélago dos Açores é uma metáfora que nos dá uma ligação ao presente local, mas que por necessidade cria uma cadeia de muitos algures – geográficos, temporais e espirituais. Tal como os Romeiros de São Miguel que, com cada passo de vila a vila, em cada casa que dormem e em cada rua que param para descansar, expandem a noção do que constitui o seu bairro. Continuam a andar e a cantar e nesse movimento está um ato que amplia e fortalece os laços de comunidade nas pessoas que eles encontram.

Nos Açores, sobreviver continua a depender do agrupamento dessas ligações aos outros algures, tornando comum a ideia de que o nosso bairro é um espaço alargado, trans-local e interconectado. Na pequenez da híper localidade dos Açores, os habitantes têm tido que ir além dos 360º de horizonte oceano, além do que é imediatamente visível e os rodeia, e além da fronteira intelectual da cultura e do pensamento insular. Quem se movimenta pelos Açores demonstra constantemente que o seu bairro não se limita ao horizonte, o seu umwelt está em constante expansão, seja através das ligações resultantes do partir ou do retornar, ou pelas ligações aos que estão de passagem. Tudo isto estilhaça a noção de um bairro como um lugar delimitado. 

De qualquer forma, este é o meu bairro açoriano. É movimento e mudança na história, um “para cá, para lá” através de mapas, da memória e das medidas. Do ponto de vista das comunidades migrantes, o nosso bairro pode ser frequentemente contemplado através do apreço por enredos antigos, mas só se pode sentir realmente os contornos de um bairro vivendo nele no presente coletivo. É por isso que, esteja onde estiver, sempre que desenho o meu bairro açoriano, estou em casa. 

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O antropólogo Miguel Moniz é investigador no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa e Diretor do Migrant Communities Project. O seu trabalho tem sido financiado pela Fundação Fulbright dos EUA, a ERC, FCT, Massachusetts Cultural Council, Fundação Luso-Americana (FLAD) e Erasmus +.  De Cape Cod, MA, vive em Portugal há 25 anos, mas encontra-se frequentemente na sua Nova Inglaterra natal e visita os Açores sempre que possível.