A Diáspora Açoriana e o Rosto Americano

Diniz Borges
#Crónica

Há vários anos, a revista Time publicou uma edição especial dedicada ao multiculturalismo nos Estados Unidos.  A capa era composta, essencialmente, por uma mulher mestiça com a manchete: O Rosto da América. A jovem era, simultaneamente, familiar e exótica. Com um sorriso plácido, e uma feição ambígua, estávamos perante alguém que, segundo a popular revista americana, poder-se-ia encontrar numa cidade metropolitana de Los Angeles, Chicago ou Nova Iorque, – uma curiosa mescla da Ásia, do Médio Oriente, da África, do Mediterrâneo, e da América Latina, com traços anglo-saxónicos. O modelo da revista Time não era uma pessoa verdadeira, mas sim uma composição cibernética. A imagem havia sido criada por um computador, através da metamorfose de homens e mulheres provenientes de várias raças e grupos étnicos. Tal como foi então explicado pelos editores da Time, estávamos perante uma previsão dos frutos que emergiriam da sociedade multicultural que, quer o poder queira quer não, despontava no continente norte-americano. A sociedade de hoje onde os açorianos e os seus descendentes estão cada vez mais integrados.  

A capa da revista cativava uma verdade essencial da América no princípio do novo milénio. Hoje, os Estados Unidos são, cada vez mais, um país diversificado, uma sociedade híbrida, uma nação de fronteiras imprecisas e de bizarros extremos. Nunca antes, na história da humanidade, houve uma sociedade tão diversa, e nunca tantas tradições, crenças e valores haviam integrado uma só cultura. Entretanto e apesar de todas as vulgaridades ditas e debatidas sobre o melting pot, o mosaico humano, as coligações arco-íris, e as preocupações com o chamado “acastanhamento” da América, a miscigenação, pelo menos na sua plenitude, isto é: como cruzamento aberto, e descomplexado, entre raças e culturas diferentes, mudou o rosto americano, não só nas grandes urbes, mas um pouco por toda a América.  

Historicamente, as vivências dos grupos étnicos nos Estados Unidos principiaram pela separação: ou seja, pouca participação do emigrante na nova cultura e uma manutenção quase rigorosa da cultura de origem; metamorfoseando-se aos poucos na integração: a participação na nova cultura e a manutenção de alguns aspetos da cultura de origem, os quais por vezes já sofrem da aculturação proveniente do mainstream; e concluindo, quase sempre, numa assimilação, o tal extremo da aculturação, em que os descendentes dos imigrantes participam ativamente na nova cultura, com pouquíssimas ou nenhumas referências à cultura dos seus antepassados, acabando por perder elementos fundamentais dessa mesma civilização. Daí que os grupos étnicos nos Estados Unidos, rarissimamente, tenham ficado pela aculturação e a mesma seja, infelizmente, apenas um mero passo para a assimilação. É que, apesar de ainda se verificarem alguns vestígios da cultura de origem, especialmente no campo gastronómico, não se tem registado, na vasta maioria dos casos, uma verdadeira interligação, um intercâmbio genuíno, entre as várias culturas. Dir-se-á, sem exagero, que na multiplicidade dos grupos étnicos que têm existido nos Estados Unidos, registou-se, quase sempre, a inevitável absorção pelo grupo, ou grupos, dominantes, acontecendo quase sempre a fatal escassez de identidade.

Como se sabe, os imigrantes, incluindo os açorianos, começam pelo tal processo de separação. Daí que tenham surgido, um pouco por toda a nação americana, os tais guetos sociais, onde manter o elemento da cultura de origem era, e em alguns casos ainda é, o mais importante. No nosso caso, o que se sabia e o que se celebrava nas ilhas foi recriado nas comunidades açor-americanas para sobrevivência, para se dizer, como afirmou algures o poeta Álamo Oliveira: que em terra de ninguém também se é gente.  

Os imigrantes açorianos, à semelhança dos seus homólogos de outras partes do globo, conservaram muitos elementos da sua cultura e, excecionalmente, participavam na cultura dominante. Com a passagem dos anos, e com a assimilação dos filhos, veio, mesmo até para os imigrantes, a integração. É que agora, e para além das recriações da sua terra, da manutenção dos elementos da sua cultura popular, das suas festas ao Divino, dos bodos de leite, das procissões, das matanças do porco e das danças do carnaval, os imigrantes, particularmente os que saíram dos Açores na juventude, ou princípio da vida adulta, começaram, através dos filhos, a participar, embora primitivamente, na cultura dominante, designadamente, através da escola e das atividades extracurriculares dos filhos. Já se vai, particularmente desde o começo do novo milénio aos jogos de beisebol, ao recital de ballet, às representações de teatro juvenil e aos “pot-lucks” de fim de ano letivo. E aí está presente o nosso intercâmbio de culturas, limitado, muitas vezes, à massa sovada, à linguiça, ou às malassadas. 

Mais tarde, já com a segunda, e sucessivas gerações, a integração passa a assimilação total. Em muitos casos já nem as guloseimas portuguesas estão presentes. Essa participação no quotidiano do “mainstream” não é um aparte ou um apêndice. É sim parte integral de uma vivência toda ela modulada pela cultura dominante. E até mesmo a gastronomia sofre. Na Califórnia, por exemplo, apenas a primeira geração ainda come bacalhau na noite da consoada, as outras gerações já preferem o peru, o presunto ou “steak”, o bifão americano. É que assimilação, sem diluição, especialmente para gente que veio com altos índices de analfabetismo, com necessidades económicas, é praticamente impossível. Um passo para a assimilação é, seguramente, um passo fora da cultura de origem. Ser totalmente bicultural nos Estados Unidos, pertencer de pleno direito a duas ou mais culturas, ainda acontece apenas numa percentagem extremamente reduzida de emigrantes, incluindo açorianos. É uma elite cultural. A vasta maioria da nossa gente fica mais americana do que portuguesa, com hábitos mais californianos (ou de qualquer outro estado) do que açorianos.    

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E o que acontece com a comunidade açoriana nos Estados Unidos é sintomático do que aconteceu com outros grupos étnicos. Como exemplo, olhemos, brevemente, a história dos italianos nos States. Antes de 1880, haviam emigrado para os Estados Unidos cerca de 80 mil italianos. Entre 1880 e 1900, cerca de 800 mil e, entre 1900 e 1920, cerca de 3 milhões. Perto de 80% vieram do sul da Itália, de zonas rurais, onde proliferava uma agricultura arcaica e muita pobreza. A grande maioria estabeleceu-se na zona de Nova Iorque. Hoje, uma vastíssima percentagem dos americanos de ascendência italiana ainda vive a menos de 200 milhas de Manhattan. Moravam em “Little Italies”, tal como a nossa gente ainda faz em certas zonas dos Estados Unidos, onde também foram criados os “Little Portugal’s.” Os emigrantes italianos não confiavam nas instituições americanas, tal como não haviam acreditado nas instituições do poder no seu país de origem.  

À semelhança dos nossos primeiros emigrantes açorianos, também os italianos desconfiavam das escolas. Eram poucos os que acabavam o ensino secundário. E toda a comunidade mantinha-se fiel ao provérbio italiano “tolo é aquele que torna os seus filhos melhores do que ele.” Os rapazes trabalhavam e as raparigas ficavam em casa, não fossem acabar por destruir a honra da família casando com um americano ou com alguém de outro grupo étnico, para eles quase todos inferiores. Criaram as suas sociedades fraternais e estavam mais interessados em erguer estátuas a Colombo, Verdi e Garibaldi, do que em investir na educação dos seus rebentos, porque tal como escreveu Onésimo Almeida: "desde sempre que os diversos grupos étnicos que compõem esta aparência de América sentiram a necessidade de introduzir os seus santos, proclamar os seus heróis, criar os seus mitos.”  

Levaram anos para participar na vida cívica e política do país. Para eles, o estado era: “lo stato ladro” – o estado ladrão. Os republicanos eram dominados pelos ianques e os democratas pelos irlandeses. O primeiro, e, indubitavelmente, o mais famoso político de origem italiana, o antigo presidente da Câmara de Nova Iorque, Fiorello LaGuardia, tinha sangue judeu e a maioria do apoio veio da comunidade judaica. Foi apenas em 1950, 30 anos depois de extinguir-se a grande onda de emigração da Itália, que o primeiro italiano foi eleito para líder do poderoso aparelho politico-partidário Tamany Hall.  

Porém, a comunidade italiana também começou o seu processo de assimilação. Nos fins da década de 1930, quando o sociólogo William Whyte observou os gangs italianos na zona norte da cidade de Boston, distinguiu entre os “rapazes da esquina” e os “rapazes da faculdade” membros de gangs que estudavam juntos na busca da mobilidade social. Com a segunda guerra mundial e uma grande percentagem de filhos de emigrantes a fazerem parte do famoso exército multiétnico dos Estados Unidos, os descendentes de italianos, apesar de sofrerem do estereótipo: “homens do crime organizado e de negócios sombrios”, tornaram-se políticos de todos os quadrantes e de todas as esferas, exemplo de Ferdinand Pecora e Mario Cuomo, entre outros; dirigentes de grandes companhias americanas, como Lee Iacocca da Ford e da Chrysler; artistas e celebridades como Frank Sinatra  e Joe DiMaggio.  No fim dos anos de 1980, a comunidade de origem italiana estava completamente assimilada e parte integrante do American Way of Life. Levou cerca de 100 anos.

Com os açorianos o mesmo acontece. Apesar dos nossos números serem insignificantes, em comparação com essas comunidades, pouco a pouco ficamos assimilados ao mainstream americano. Dos nomes que ouvimos, que vemos, e lemos na comunicação social, desde músicos a desportistas, todos estão totalmente integrados no mundo estadunidense. Os que não estão acabam por abrilhantar casamentos, aniversários e festas dos Santos Populares nos nossos salões ou a jogar para o clube local de uma liga amadora. Na política, cada vez mais são os luso-descendentes que descobrem esse mundo, enquanto os emigrantes continuam, infelizmente, mais preocupados com o último mexerico da associação do bairro. Apesar do crescimento, ainda são pouquíssimos os descendentes de portugueses neste mundo tão importante e decisivo como o da política. Se bem que a nível nacional este mundo passe cada vez mais por ser-se milionário, atributo que nem todos os açor-americanos têm, não nos esqueçamos que não é apenas em Washington que as decisões são feitas, mas também nas câmaras municipais das pequenas vilas e cidades, nas direções escolares, nas comissões de planeamento, entre outros órgãos do poder americano. 

Na comunidade de origem italiana dos Estados Unidos, a grande onda de emigração quedou nos anos de 1920, e a sua ascensão, que infelizmente só aconteceu com a tal inevitável assimilação, ocorreu na década de 1980. Se o mesmo acontecer com a nossa comunidade, a qual teve o seu apogeu da emigração dos Açores entre 1965 e 1975, teremos de esperar mais uns anos. Até lá, não podemos ficar satisfeitos com falar de e a sonhar com, uma assimilação sem diluição, até porque isso nunca acontece.

Permitam-me contar-vos um caso pontual: é a história de dois contemporâneos meus, dois patrícios das minhas ilhas: o Daniel e o Frederico. Ambos vieram com os seus pais dos Açores quando tinham cerca de 12 anos. Ambos frequentaram as escolas americanas, a primária e a secundária. Ambos tocaram na filarmónica portuguesa e jogaram futebol na equipa local. Entretanto, ao terminarem os estudos secundários, os seus destinos jamais se cruzaram. Frederico optou por ficar na comunidade açoriana, Daniel decidiu expandir os seus horizontes. Aos 18 anos, Frederico foi para o mundo do trabalho, era necessário ter um carro novo para impressionar as moças portuguesas na festa de Nossa Senhora de Fátima. Daniel, com o seu carro velhinho, foi para a faculdade: tinha um sonho, quimérico, para muitos dos seus colegas e mais disparatado para os amigos dos pais: queria ser advogado. O Frederico, Fred para os seus amigos, depois de entrar no mercado de trabalho, penetrou o mundo do associativismo português. Foi membro de várias organizações sociais e comissões de festas e um indivíduo muito falado, extremamente popular, nos meios comunitários. O Daniel continuou na faculdade, esquecido para a maioria dos seus conterrâneos. O tempo foi passando e onde estão hoje estes dois amigos, três décadas depois de terem ido por caminhos separados, estradas com incontáveis aculturações e assimilações?

O Daniel é, evidentemente, um advogado. Voltou à zona onde foi criado e exerce a sua profissão junto do multiculturalismo americano. Continua amante da música e toca numa orquestra sinfónica da sua zona. Gosta de teatro, tendo que fazer frequentes deslocações a São Francisco e Los Angeles. Aprecia as artes plásticas e a sua firma apoia várias galerias. É raro participar na vida comunitária. Quando o convidam, diz que, infelizmente, não tem tempo, a sua vida profissional não o permite. Numa exposição de arte promovida durante uma das edições do simpósio Filamentos da Herança Atlântica, ficou maravilhado com a qualidade dos nossos artistas plásticos açorianos. Já regressou aos Açores, aliás, já lá fez férias algumas vezes. Gosta das suas ilhas e gosta muito de Lisboa, mas também gosta de viajar pelo mundo. Está totalmente integrado na sociedade americana. A comunidade portuguesa, embora à sua beira, é um lugar distante e remoto. Aprecia o mundo norte-americano, e participa nele.

O Frederico, por seu turno, ficou na comunidade, integrou-se na agropecuária e tem um negócio de serviços. Tem casa grande e carro luxuoso. Já foi presidente de sete festas portuguesas, fez parte de várias direções, tocou na filarmónica local durante muitos anos. As filhas já foram rainhas das festas do Espírito Santo. O seu mundo é a comunidade local. Também ele gosta da sua terra e lá tem ido várias vezes. Nunca foi a Lisboa. Gosta de passar os seus dias de descanso, na sua ilha, a ver uma tourada. Tem duas filhas casadas, sem terem estudado, uma está terminando o ensino secundário e não compreende porque insiste em ir estudar para longe. Acabará por aceitar.

Estas duas vidas são paradigmas de muitas outras nas nossas comunidades no estado da Califórnia e em outras partes onde vive gente oriunda das nossas ilhas. Quis partilhar a história, sem fazer juízos ou recriminações. Acho que é apenas um exemplo claro e inequívoco dos processos de aculturação, assimilação e integração que se vive, quotidianamente, no mundo açor-americano. De encadeamentos que há muito existem e, raramente são trazidos à flor da pele, mas que são importantes temas de debate e, obviamente, de estudo. Que fique claro que nos Estados Unidos todos os grupos étnicos, mais cedo ou mais tarde, adaptam a mitologia americana. Mas essa mitologia, apesar das lutas, constantemente, enfurecidas pelos segregacionistas e pelos puristas, acabará por pertencer ao mestiço, ao multiculturalismo. O ser humano, que abarca vários mundos, várias culturas e poderá, mutuamente, sem complexos, vivê-los e explicá-los. E é esse o caminho da nossa diáspora açoriana. Para lá caminhamos. É bom que o entendamos em ambos os lados do mar.  



Diniz Borges nasceu na Praia da Vitória, ilha Terceira, Açores. Com 10 anos de idade, emigrou para os Estados Unidos com os seus pais. Tem uma licenciatura da Chapman Univeristy e um mestrado em literatura étnica dos Estados Unidos da Califórnia State University, Dominguez Hills. Foi jornalista e fundador de programas e estações de rádio em língua portuguesa no centro da Califórnia. Durante 22 anos, exerceu o cargo de professor na escola secundária Tulare Union High School, executando também o cargo de diretor do departamento de línguas na mesma escola. É leitor de português na Califórnia State University em Fresno e no College of the Sequoias. É colaborador de vários jornais nos Açores e de jornais de língua portuguesa nos EUA e no Canadá. Coordena a página literária Maré Cheia do jornal Tribuna Portuguesa, co-moderador do podcast PALITICUS (sobre a presença da diáspora no mundo político americnao) e colaborador de várias rádios de língua portuguesa nos EUA. Está na diretoria de várias organizações incluindo a PALCUS, LAEF, Tulare-Angra Sister City Foundation e presidente da CPAC-Califórnia Portuguese-American Coalition.  
Autor de vários livros dedicados a analises políticas e culturais sobre os EUA e a diáspora açoriana, assim como de várias antologias. Tem traduzido e publicado poesia, ficção e ensaios de português para inglês e vice-versa. É diretor-fundador do Portuguese Beyond Borders Institute-PBBI (Instituto Português Além-Fronteiras) na universidade estadual da Califórnia em Fresno, onde criou a editora Bruma Publications para obras relacionadas com a comunidade no oeste americano e o Colóquio Cagarro para promover escritores da diáspora açoriana e o Azorean Diaspora Project, que entre outras iniciativas promove o simpósio Filamentos da Herança Atlântica.   
Tem sido homenageado pelo seu trabalho no ensino de línguas e ativismo cultural na comunidade da Califórnia por autoridades portuguesas e americanas, incluindo entre outras: Professor do Ano na Califórnia pela Associação de Professores de Línguas Estrangeiras deste estado (CLTA), prémio aproximando comunidades da Tulare County Hispanic Leadership Network e a insígnia autonómica da Assembleia Regional dos Açores.