A Liliputiana - em cinco andamentos

Vítor Teves
#Crónica

Qualquer semelhança com a 
realidade não é pura ficção
          -
Raul Milhafre (n.1932)


I

Como poderão ver, escrevo este texto com a ajuda de vinte e três citações de filósofos franceses, e, como não poderia deixar de ser, com a ajuda de um Gin-Trópico [ 1.º erro] com uma casquinha de limão. Este gin nasceu-me fulgurantemente entre as mãos, tenho esta capacidade de usar a ferocidade para fazer de uma simples bebida importada um verdadeiro valor cultural. Compete-me, como unicórnio central da planície da Liliputiana, separar aquilo que é cultura daquilo que não é. Do mesmo modo, esta minha bela t-shirt dizendo I AM NOT A VAMPIRE I’ M JUST STUPID é um reflexo da etnografia local, do espaço entre a AchaSardinha [2.º erro] e a Sarga [3.º erro]. Uma peça extremamente delicada para ser importada ou exportada. 


II

Esboço para as Causas da decadência das tribos literárias da Liliputiana

Depois de um período áureo, a queda é sempre inevitável. Poderíamos arranjar, para bode expiatório, um qualquer fulano, mas comecemos antes por acusar duas palavras: a Magnitude, por um lado, e a Implosão, por outro. A primeira deve-se à natureza do génio: An-Tiro, Nemésy@ e Nathalé, pelas suas naturezas, transformaram todos os seus contemporâneos e discípulos em apontamentos para consumo secundário. Frente aos colossais autores é impossível não achar que tudo já foi dito, é um facto! No que diz respeito à implosão, esta, como todos sabemos, é inevitável quando não há renovação ou entrada recorrente de novos ares. É o patamar onde nos encontramos, mais uma janela chegada, uma que seja ordenada pelo Quadriunvirato – esses tampões da Ordem Superior – , e é o colapso! 

Se sou da opinião de quem escreveu o parágrafo em cima? É claro que NÃO! Jamais em tempo algum. Sei que as tribos literárias da Liliputiana preferem sempre um bode expiatório real, um que seja um homem com dois braços e duas pernas, e, se possível, da margem, mas, infelizmente, não consegui arranjar ainda nenhum tímido miúdo para servir de vítima aos carniceiros. É sempre muito mais fácil queimar alguém a assumir as culpas do nosso próprio falhanço enquanto mentores da renovação de uma nova Era, não é verdade? O Quadriunvirato – Talbico, Urbu, Ozélim e Almê –, devia ter aprendido a frase mais importante da Literatura: O futuro nunca é aquilo que imaginamos ou apoiamos! 

As reais causas da decadência das tribos literárias são, sim, as novas comunicações, cada um está preocupado com o seu umbigo e não com o vizinho do lado. E convenhamos, o vizinho, além de chato, não escreve nada de muito criativo, não passa, regra geral, da repetição da repetição da repetição. E quando não é isso, não interessa porque simplesmente não interessa. A maioria dos textos é elogio político, retórica mastigada (sempre confundida com a real literatura) e hinos ao turismo, sem esquecer, claro, as odes à divulgação ancestral da prática do surf. 

E fora das tribos literárias o que acontece? Ah, aí sim, a Literatura, com L maiúsculo, vai, efetivamente, de vento em polpa, anda muito bem. O pauperismo nunca foi qualidade na sua essência, mas, por vezes, é realmente qualidade! Basta um bom escritor, dois bons escritores, três bons escritores e um provocador nato e chato para que tudo seja realmente salvo. Bom, tudo não, alguma coisinha. Porquê? Porque quer queiramos, quer não gostamos, é através deles que a real renovação e a circulação de ar se fará. 

pintura sobre papel - Sem Título, 2021.
pintura sobre papel - Sem Título, 2021.


III 

Na Liliputiana, um dos mais antigos jogos poéticos consiste em adivinhar de quem é o verdadeiro perfil na sombra: se Dom Fuças, se Dr. Flash. A sombra, como todos nós sabemos, anda por estes dias sobrevalorizada, por isso, quem for mais engolido pela sombra, mais valor poético terá. O vencedor baterá todos os recordes de audiência no mercado negro regional. Tendo em conta o odor da cidade, Dom Fuças vai em vantagem: não tem fotografia no facebook, não partilha emoções digitais ou arrepios de praia. Há nele toda uma encenação rigorosa, um ego em ebulição construído sobre a antiga e decadente imagem de poeta. Para sermos mais precisos, uma representação da matemática clássica: rigor, contenção e emoções programadas por robots neo-humanos. 

Já o Dr. Flash, também ele na sombra, parece estar muito na luz: não só é doutor (o que lhe aborrece de morte), como é “Flash”, instante brilhante, luz que se liga e apaga. Para piorar a situação é um amante da fotografia, dos registos diários que dão matéria inesgotável às suas criações. Com tanta intermitência, tanta luz a acender e a apagar, não é difícil perceber a irritação dos demais.

Se virmos o perfil pela direita, Dom Fuças é uma vítima: o menino prodígio colhido ainda verdinho da árvore da vida, pela tardia Academia do positivismo, anda desprotegido. Tadinho! Não obstante os livros publicados, as entrevistas, os mimos do coletivo das onças e os textos mui originais da sua mesclagem, Dom Fuças é o filho direito do esquecimento. Oh injustiça milenar! Uma injustiça An-Tireana, dizem alguns. Para esses o verdadeiro perfil, o perfil da real sombra, é o grande Dom Fuças, o raio da matemática futura em C. 

De um modo diferente, se em vez de olharmos pela direita, olharmos pela esquerda, vemos que o Dr. Flash é o real esquecido, o real ignorado, o amordaçado que, mesmo amordaçado, ainda grita. Oh, se grita! Grita tão alto que todos fingem não o ouvir. Quem? Dizem alto. Alguns até se engasgam em vídeos de aniversário dizendo: O papão! Salvem-me do papão! Dr. Flash, por trabalhar de manhã à noite, é negro, daí andar constantemente diluição na sua própria e larga sombra.

Como sempre, vai na República da Liliputiana uma enorme, enorme confusão entre Aparência e Realidade, uma que parece ser a mesmo da confusão entre Retórica e Literatura. Estas duas palavras nunca batem certo com os seus respetivos significados na Liliputiana. Todos nós sabemos que ficar na aparência imediata é a mais confortável solução, é como esticar os braços no sofá e bocejar.

No Concurso Geral do Perfil na Sombra, do ano de 2020, ao contrário do que era habitual, Dom Fuças e Dr. Flash encontraram-se empatados. Aquilo que era visto como um real empate por muitos, era visto por outros como um embuste. Como era possível? O prodígio atirado a um plinto brilhante, exposto no embuste? Oh malvada injustiça. Não era possível, sobretudo depois de tantas esperanças. Este empate teve por consequência a alteração do significado das palavras Mentira e Verdade: a verdade passou a mentira e a mentira passou a verdade. Assim, o verdadeiro perfil na sombra oculta, a luz por vir, tinha de ser, inevitavelmente, Dom Fuças. O empate nascera para durar eternamente, exatamente, dois meses, três dias e seis horas.

Este empate do ano 2020 foi encarado por alguns como a chegada definitiva ao ponto zero. O problema era que identificavam o zero sempre com o vazio – o que na realidade não é bem verdade. Se eles compreendessem o texto, já teriam visto, em tempos, a chegado ao ponto zero. Saberão eles que o zero já se encontra em “Tomei nas minhas mãos a sombra escura/ e embalei o silêncio nos meus ombros”?

Quando viramos a cabeça para o lado esquerdo, o cenário é bem diferente. Uns querem Dr. Flash na sombra, no concurso primordial do talento poético. Mas a verdade é que o Dr. Flash dela nunca saiu. Foi assim que, inseguro, colocou a cabeça de fora da cortina, espreitou para o palco principal das sombras, e tanto meteu a cabeça que rapidamente a retirou, sobretudo quando iam começar a tocar o hino da glória. Uma chatice! Disse Dr. Flash. Uma chatice ter de sair do meu quarto para ouvir um banalíssimo hino coletivo!       

O concurso das sombras, de 2020, viu nascer o empate. A balança estava, finalmente, em equilíbrio: de um lado um perfil de sombra oficial; do outro lado um perfil ardente, um com espaços cheio de gente de costas. Mas era esse, sim, que vivia, efetivamente, na sombra, independentemente da variedade das suas fotos de verão no facebook.


IV

O falso cachalote era uma importação da metrópole, e, ao contrário do normal, não era nem grande, nem gordo, isso seria um absurdo inconcebível entre o meio do Aqui-Toqui. Sempre que respondia, o cachalote arrastava as últimas letras das palavras, assim um simples “Obrigado” tornava-se num caquético tique de pseudo-ai-que-me-dói-a-espinha “Obrigaaaaadxxx”. E porque o mundo anda à volta do Aqui-Toqui (distorção ocular nível 8.7) é normal encontrarmos as mesmas soluções de Nova Iorque penduradas na Liliputiana, ainda que com sessenta anos de atraso.

Do mesmo modo, confirma-se: as mudanças do Governo Interino da Liliputiana tiveram por principal consequência a alteração nas políticas galerísticas. Aquilo que pode parecer uma crítica, é, de facto, um elogio. Há finalmente uma política de apoio aos jovens artistas. Sabemos que a qualidade é sempre aquilo que define uma exposição, ainda que digam, as más línguas, que tudo não passa de um favorecimento aos filhos de uma ou outra família no poder ou com dinheiro. Eu nunca diria uma tal “barbaridadeeexx” porque a pesquisa da pintura, enquanto pós-medium, é, finalmente, uma “relidadeeexx”. Temos finalmente celofane brilhante, impressão digital sobre tela, suspensão de duas linhas, cores que brilham no escuro e, claro, o imprescindível som e projeção vídeo, tudo em um. É o Leve três carcaças e pague uma! Para tão pindéricas soluções só consigo dizer UAU! E perguntam-me: O que tem a ver o novo Governo Interino com a alteração dos investimentos privados? Tudo, literalmente, tudo! 

Desde o último ReiBelo que a ilha não via tão altos e eloquentes talentos. ReiBelo teve, como todos sabemos, o apoio inestimável dos Condes de Allquêque para estudar em Paris, mas hoje em dia os apoios na Liliputiana são muito contidos, mais subtis, consistem em enviar links de doutoramento de Coimbra, são uma forma de dizer: "tira doutoramento e aí dar-te-ei ouvidos”. Isso porque toda a gente sabe, a inteligência é apenas uma importação da metrópole que nasce depois do doutoramento e nada mais, não é algo que se encontre na Liliputiana. Se soubesse dos reais meandros da Academia - da sua falta de originalidade e de pensamento - fugiria o Senhor Allquêque II, como o diabo da cruz, da Academia! Aos ricos, aos que fazem um semestre em pincelada em Berlim e Nova Iorque (meras marcações de ponto) dão-se nozes, aos outros, links de encher chouriços. 

Mas voltemos ao cachalote importado, uma maravilha da matilha, um belo exemplar da distinção entre o vazio 0.0 do vazio 0.0.0. Produto elevado das práticas curatoriais do hipercapitalismo oco, cujo uso excessivo da palavra Pensamento nunca é, de facto, real pensamento. Mas, para que não julguem que tudo é mau na República da Liliputiana, há finalmente bons ares a rodopiar as galerias altas do Centro de Arte Contemporânea. Nele podemos finalmente respirar e todos são convidados! Bom, todos, todos, não! Todos exceto a cidade que o abriga! Um passo largo para dar pela criança que gatinha. 


V

Calar a boca? Mas se nem em frente ao Rei calei a boca, era em frente ao Capitão do Donatário 4.2 que o iria fazer? Por ordem da Rainha, faço apenas aquilo que ela me ordenou: torturar-vos até à morte nesta paisagem mutável. E se disserem o contrário sobre a paisagem estarão, como sempre, apenas agarrados à Aparência das Cousas.



Vítor Teves
Torre de Londres, 6 de julho de 1535

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Vítor Teves nasceu em Ponta Delgada, em 1983. É licenciado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestrando em Estudos Culturais e Interartes na mesma faculdade. Publicou poemas em diferentes revistas e conta com três livros: Dentes Tortos (2017; edição de autor); Cabra Bem Cabra (2018) e Lamarim (2019). Entre 2019 e 2020, foi um dos editores da Enfermaria 6 e um dos responsáveis pela publicação da antologia Terceira Margem (2019). Além de escrever poesia, desenha e pinta.