MATÉRIAS DO CORAÇÃO

Daniel Gonçalves
#Crónica

I: MATÉRIAS ORIGINAIS

Ontem, o meu coração ainda não era este mistério. Antes de carimbar o sangue que leva a vida ao meu corpo, o meu coração estava guardado na sebenta da minha mãe. A minha mãe amava um amor que ainda não tinha saído do peito dela. Um vulcão por emergir, uma antena paralisada no fundo do mar. Por isso, o meu coração começou a bater numa pauta estranha, com uma música sem compasso, preso à clave de sol, desse amor que iluminava o sonho, e cantava conforme os sentidos deixavam. Se a janela se abria, sobre o fascínio da distância, as cores eram todas uma lança intensa, ferindo o silêncio. Dir-se-ia que os garajaus vinham ao peito dela contar do que havia boiando entre as águas do céu e do mar. 

Nesse tempo, o meu coração era uma palavra sem caligrafia. Cifrado num labirinto de sentidos, flores que alimentavam a cor do sangue. A minha mãe não sabia ainda que o mundo tinha espinhos que penetravam no peito. Aceitava que eles rasgassem as bainhas do vestido, que arrepiassem as pontas dos dedos, mas não percebia como podiam doer tão fundo, sem abrir caminho sequer, só por inquietarem a respiração, só por beberem destas faltas de ar, deitando milhafres ao chão, murchando as urzes da memória. Nesse tempo, a minha mãe fingia que o coração era um ilhéu dentro de um poço, e lançava arpões aos olhos das marés, que nunca subiam ao ponto da luz. Era uma escuridão em movimento que protegia os nomes sagrados. Nomes sem apelidos nem genealogia. Nomes que vinham ao peito dela deixar as vogais e escapavam com as consoantes. Por essa razão, a minha mãe cantava só com suspiros, e a janela do quarto escutava, guardando as notas, que escorriam sem chegar ao parapeito. Faziam papiros da humidade triste. E neles o meu coração existia como as borboletas, sem tempo de vingar depois do verão.

II: MATÉRIAS PRESENTES

 Hoje, o meu coração aceita este mistério. Fez a migração natural das aves do amor. Subiu da sebenta para as mãos, dançou pelo corpo, bebeu da romã da alegria e fecundou as hélices do sonho. A minha mãe deixou de cantar pelo silêncio e fez um apelido com as consoantes que lhe bateram à porta. Dentro do seu ventre, na cave do coração da minha mãe, com a vigilância do coração do meu pai, o meu coração criou-se em novelo de força, como um trapézio capaz de elevar as pequenas coisas, tocando os calcanhares de deus, onde os milagres dão coices à escuridão, acendendo destinos. Assim foi para que toda a poesia acontecesse, o meu coração cantante, como uma máquina de purificar palavras, filtrando as agulhas, a memória das primeiras chuvas, as nódoas azedas.

O meu destino preferido é correr com o coração na boca. Fujo constantemente de leopardos, que me tentam dobrar os joelhos, deitando-me ao chão. Os leopardos são a noite sem estrelas, a lua sem marés, o teu rosto sem nome. São um pericárdio de aço, atrasando a respiração. Mas corro, como corro. Não temo o enfarte, nem a taquicardia. Não penso nos apertos, nem nas aflições, os ventrículos gritando para a carótida, os átrios encharcando as veias. O meu coração é um mecanismo perfeito dentro do relógio da esperança. Já batia antes de a minha vida ter ordem. Já distinguia o dia da noite antes de os meus olhos se abrirem. O meu coração faz tiquetaque dentro do destino, amolando garras, adoçando venenos, resfriando erupções.

De tanto correr com o coração na boca, tomou o lugar da minha língua e passou a falar pela cabeça. Ganhou foral de regente, administrando as ordens do futuro. O meu coração passou a ver no escuro, traduzindo esses pequenos brilhos. Onde escapava uma sílaba do destino, ele completava o verso. Onde surgia uma mancha de cor, ele insistia num tom de azul, e se mergulhasse nesse pressentimento de mar, previa o tamanho dos teus olhos. 

Um dia, tudo foi tomado de um impulso índigo. E de dentro para fora, todo o teu corpo ganhou matéria de luz. Aos poucos, o meu coração fora coleccionando as pequenas engrenagens que te puseram de pé. Foi como se ele te tivesse inventado, ou se sempre estiveras dentro de mim, soluçando do peito para a boca, da boca para a ponta dos dedos, da ponta dos dedos para a barragem dos cadernos, onde todo este poema se tornou navegável.

III: MATÉRIAS VINDOURAS

Agora, para sempre, o meu coração é este mistério. Mais do que um milagre complexo de carne e espírito, é feito da mesma matéria que nos faz acordar. Quando decidimos podar as pedras, e estender as videiras. Quando pomos os discos a tocar, e rodamos com os instrumentos. Quando abrimos os livros, e deixamos os poemas subir por estas paredes, e descer pelos candeeiros, acendendo as tristes noites, onde não resistimos a fechar os olhos, perdendo horas de nos olharmos por fora, vendo por dentro, todas estas formas estranhas de dizer que um coração é mais do que um músculo, porque se aperta sem perder tamanho, e acelera sem se destacar do peito.

Amanhã, quem sabe, o meu coração pára e todas estas evidências permanecem, provando o que nunca pode ser confirmado, porque, afinal, o coração é a biblioteca do amor, e mesmo que arda, se foi dito, foi sentido, e se foi sentido não morre, jamais.

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Nasci em Zurique, Suíça, em Abril de 1975. Cresci em Santo Tirso, formei-me em Braga, vivo na ilha de Santa Maria, nos Açores, desde 1999. Sinto-me esta árvore anfíbia, com raízes helvéticas, tronco tirsense, ramos minhotos e copa atlântica, frutos de granito e alga. O meu maior feito lírico e natural é ser pai da Margarida, da Catarina e da Maria Inês.


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia