
As memórias da baleação
«Eu morava num sítio chamado Canada da Levada. O meu pai derretia baleia aqui, era dos que trabalhava a derreter baleia, e eu lembro-me de ir ali em baixo, antes de chegar à Casa dos Tiagos . Aferrei-me à saia da minha mãe e disse: "Tenho medo", e ela disse "Medo de quê?", "Da casa grande". Aquela casa metia-me medo. Voltou a escurecer. Não me lembro de passar o resto do caminho. Só me lembro de chegar lá abaixo e ver o meu pai. Vinha do lado dos caldeiros para cá, com uma ferramenta, tinha um cabo, mais tarde soube o nome, não sei se é o verdadeiro, mas é o que nós chamamos a espelha, o que cortava o toucinho na baleia para depois ser içado no guindaste e vir para os caldeiros derreter. Voltou a escurecer. Já não me lembro de vir para cima. É um quadro que me ficou na mente. Não devia ter mais de três anos, o meu pai faleceu daí a um ano.»
Entrevista a Eduardo Reis de Borba. Vila do Topo, ilha de São Jorge, 18 de Agosto de 2015.
Durante mais de um século, a caça à baleia foi uma actividade fundamental nas comunidades marítimas do arquipélago. O passado da baleação é hoje recordado na monumentalização das fábricas e casas dos botes, na reconstrução dos botes baleeiros e na celebração das regatas. Estes rituais deram uma segunda vida à baleação, tornando-a num objecto de património cultural. Mas e as memórias dos baleeiros? O que nos dizem as vozes do passado? Será que as podemos também considerar como património cultural da região?
Foi para responder a estas questões que criámos o projeto Arquivo de Memórias da Baleação. O objectivo era claro: encontrar todos os baleeiros vivos no arquipélago e filmar as entrevistas para reter as histórias de vida que estão a desaparecer. Numa segunda fase, construímos um arquivo com múltiplos pontos de acesso aos temas, nomes e locais referidos nas entrevistas, bem como as transcrições dos excertos mais relevantes, para serem disponibilizadas ao público no futuro.
A constituição de um arquivo de história oral é um processo sinuoso, cheio de dificuldades criadas pela natureza subjectiva das fontes. Mas o seu valor é incalculável. Basta olharmos para outros exemplos. Em Chernobyl, o trabalho de Svetlana Alexievich revelou o extraordinário impacto do desastre nuclear a partir do discurso directo das vítimas. O mesmo se aplica à recolha de memórias dos sobreviventes do Holocausto que previne qualquer tentação de negacionismo. Nas comunidades da pesca, caracterizadas pela transmissão informal de conhecimentos empíricos e por uma visão particular da ecologia humana, a recolha de memórias é indispensável para reconstruir a realidade histórica.

Num primeiro balanço, o projecto traz alguns resultados surpreendentes. A indústria baleeira foi um elo de ligação do arquipélago com uma intensa mobilidade de homens, e as suas famílias, entre todas as ilhas. A baleação, assente na exportação dos óleos e farinhas de cachalote, foi de enorme importância relativa numa economia com práticas de subsistência, e manteve um papel relevante até aos anos setenta do século passado, mesmo com a expansão dos serviços públicos e a diversificação das actividades económicas. Com as remunerações ou soldadas, os baleeiros construíram casas, compraram terrenos, permitiram que os seus filhos seguissem os estudos. Além desse impacto material, a baleação foi, em muitos locais, um ritual de transição para a vida adulta.
Estas ideias gerais não representam a diversidade de registos das entrevistas. É a singularidade de cada história de vida que constitui a maior riqueza do arquivo.

A preservação das memórias não está isenta de controvérsia. Por um lado, os relatos sobre a vida animal diferem dos padrões actuais de sustentabilidade ambiental e de um uso não-letal dos mamíferos marinhos em actividades como a observação turística. Por outro, a heroicidade dos baleeiros, presente no discurso do património baleeiro, inibe o conhecimento sobre as agruras, as alegrias e os dilemas de cada indivíduo.

Este trabalho prossegue a longa recolha feita por Dias de Melo, na ilha do Pico, nos anos oitenta do século XX, publicada em Na Memórias das Gentes. Ontem como hoje, é preciso desconstruir o «feitiço de balear» a partir das histórias quotidianas e experiências pessoais que motivaram a baleação. E também evitar que a memória social deixe no esquecimento as memórias dos baleeiros.
Podem as vozes da baleação serem consideradas património cultural? A nossa resposta é sim, na medida em que elas exibem um sistema de valores, crenças e experiências únicas que representam o nosso passado.
Vídeo sobre o projecto disponível aqui.
Francisco Henriques é licenciado em História pela Universidade da Cantábria. Publicou o livro A Baleação e o Estado Novo (2016) e diversos artigos sobre história contemporânea e património cultural. Mais recentemente colaborou com o Museu Francisco de Lacerda, na ilha de São Jorge, na conceção da nova exposição permanente.
Luís Bicudo é licenciado em cinema pela Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa. Realizou o filme documentário “Baleias e Baleeiros” (2013). Em 2016 fundou a empresa "Our Island, Lda." e desde então divide a sua actividade profissional entre o cinema, o empreendedorismo e o turismo de natureza.
*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia