Meu testemunho

Rui César
#Crónica

Quando me foi pedido um testemunho da minha experiência como micaelense nas marchas Sanjoaninas, percebi de imediato o equívoco.  

Eu não sou um micaelense, nado e criado nos Açores, mas vivo há mais de 40  anos numa ilha que me aceitou duma forma excelente e aonde criei fortes raízes pessoais. Mas, mais que isso, devido à minha profissão, tive oportunidade de  vivenciar experiências em todas as outras ilhas. Mais de vinte anos a visitá-las em trabalho, quer em consultas da minha especialidade médica, Endocrinologia e Nutrição, quer em ações de sensibilização sobre um dos graves problemas de  saúde destas ilhas paradisíacas, uma pandemia não transmissível, mas bem pior do que a que estamos a viver de momento, a Doença Diabética! 

Também a nutrição fez parte da minha atividade, com Programas como: ”Bom  pão, boa alimentação”, “Muito sal, muito mal”, promoção do benefício da ingesta  de água, etc., etc. Tudo isto me levou, repetidas vezes a todas as ilhas, intervindo em casas do povo, salões de bombeiros, polivalentes que vão proliferando por essa região fora, sempre de casa cheia, incluindo o Corvo, a menos populosa como todos sabemos, mas onde tive uma assistência com 37 pessoas, quase 10% da população! Que orgulho!

E o porquê deste preâmbulo? Muito simples... 

Quando cheguei, a 13 fevereiro de 1979, inserido num grupo de 25 médicos a cumprir o Serviço Médico à Periferia, serviço esse que acabou por estar na  génese do Serviço Nacional de Saúde, oficializado em setembro desse mesmo  ano, fui colocado com mais três colegas no Centro de Saúde de Vila Franca do Campo, e com que carinho nos tratavam todos! Alojado em Ponta Delgada, sempre que iniciava viagem ao fim do dia, vinham várias pessoas à porta do Centro desejar-nos bom regresso, num gesto amigo!

Por todas as ilhas, ao longo dos anos, a simpatia foi sempre semelhante, forma de estar no mundo de gente boa. Não me recordo de alguma situação menos  hospitaleira!

Ora, quando, em 2010, um grupo de sócios do Clube Micaelense, depois de ter participado, no Carnaval desse ano, numa marcha do Clube, que a minha mulher, Lô Athayde, tinha escrito e que nos ocupou algum tempo a ensaiar, mas com excelente apego e entusiasmo, ficámos com uma sensação de vazio quando tudo acabou! Assim. como que com aquela sensação de que... quero mais!

Então, alguns desses elementos, capitaneados por essa força da natureza que era a Alice Carreiro Ataíde, perguntaram-se:

– E porque não levar uma marcha às Sanjoaninas?

A par de uma ou outra voz mais recalcitrante, não houve dúvidas! Amigos trouxeram amigos e a obra realizou-se! Volta e meia lá aparecia alguém que duvidava do empreendimento, mas era arrasado pelo entusiasmo de todos.

E quando, na noite de S. João, a Marcha dos Coriscos começou a descer a Rua da Sé, a minha mulher, autora de várias letras e músicas, e eu, que éramos os padrinhos, e por isso seguíamos na frente, comentámos: 

– Se isto corre mal, somos os primeiros a levar com os ovos!

Qual quê! Que receção fantástica! A escadaria da Sé de pé, em peso a  aplaudir-nos, as pessoas que ladeavam a rua a vitoriar-nos! É indescritível!

Que bairrismos?! O povo terceirense sabe receber como ninguém! Ainda recordo o comentário entre nós, com incontida emoção, como se fosse hoje! Olhar para trás e ver um mar verde de marchantes Coriscos, cobrindo toda a extensão da rua é uma imagem que não tem paralelo nas nossas vidas! 

Fomos a primeira marcha extramuros a desfilar nas Sanjoaninas, mas ficamos felizes por ver que outras, quer de S. Miguel quer de outras ilhas, nos seguiram  as pisadas. É muito importante, isso demonstra bem a união que há entre o povo açoriano! 


Ponta Delgada, 4 de dezembro de 2021 

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Rui César 
Médico - Assistente Hospitalar Graduado Sénior Jubilado 
Fundador e Ex-Diretor do Serviço de Endocrinologia e Nutrição do  
Hospital do Divino Espírito Santo 
Ex-Prof. Associado Convidado do Ciclo Básico de Medicina dos Açores/FMUC