O Carteiro de São Mateus

Álvaro Laborinho Lúcio
#Crónica

Aquela não é uma hora boa para chegar. Com o sol a ensaiar a despedida, ainda longe da queda para lá do horizonte, os raios agarram-se aos olhos de quem o enfrenta e turvam a visão de quem perscruta os detalhes da terra na sua junção com o mar. Não foi, pois, um bom momento para a chegada do Poeta e, no porto, por entre a azáfama que traz o entardecer, o que ele viu foi um homem pedalando entre as casas, chegando-se às embarcações, sustendo aqui o andamento para logo o retomar em busca de outro destino. O Carteiro! Exclamou, para si, surpreendido, o Poeta. Aquele boné de pala dura, o casaco aberto que o vento enfuna. É ele. O Carteiro. E logo a baía se desenha a seus olhos, igualzinha àquela outra que os seus olhos lhe gravaram na memória, lá longe, numa ilha perdida no Mediterrâneo. 

Mário! Gritou. Mário!

Ali, do entardecer ao cair da noite, vai o tempo de uma distracção, e a bruma, até então à espera do trambolhão do sol, mal termina a faina, logo avança afastando o mar das vistas de quem chega, até ela se transformar em nevoeiro. É um porto pequeno, como pequena é a povoação que escorrega até chegar a ele. Cercado pelo casario e pela pedra de lava, despejando para as águas as embarcações que repousam sobre a rampa que nelas mergulha junto ao cais, o porto é o lugar de todos os sons, de todos os sonhos, o lugar de todos os lugares. 
O Arquipélago está pejado de lugares assim. Pequenas enseadas, calhetas, onde o oceano ora vem repousar, ora vem bramar, naquela sua constante peregrinação entre o terno, o dócil, o amoroso, e o bestial, o aterrador. Mas ali, naquele recanto que Angra deixou escapar-lhe, nasceu um tesouro, pequeno de tamanho, imenso na imaginação que convoca, nos sonhos que desperta. 

São Mateus!

Não é só aquilo que se vê, de dentro para fora:

                    «… algumas casinhas e um abrigo formado por rochas vulcânicas. Pesca-se à linha e em barcos que levam de cinco a seis tripulantes, o congro, a abrótea, a moreia, a lagosta, a cavala com um anzol mais pequeno, e a sardinha com a rêde que se chama cercado e que se arrasta para a terra até meter a pesca debaixo dos varais»;

é, também, aquilo que, de fora para dentro, deixa que cada um veja como se acha capaz de ver:

«Quando baixa o nevoeiro, sem mar à vista, a ilha deixa de ser ilha. Desprende-se a ilusão do real. Da própria consciência de si. E transforma-se num lugar furtivo, num intervalo a convidar à efabulação […] Do nevoeiro, escondendo o mar da ilha e roubando a ilha ao mar, brotam arlequins, duendes, feiticeiros de almas. Mitos. Velhas lendas. […] O mar, escorraçado pelo nevoeiro, sai de cena. Toda a verdade fica do lado de lá».

É, então, esse, o tempo dos poetas. Do Poeta. Daquele que chega, e acaba de envergar as vestes de Neruda.

O Carteiro de São Mateus! Volta, ele, a exclamar. E parte, à procura de Beatrice, como procura o homem que viu a pedalar, girando de um lado para o outro.

Vinho-de-cheiro, aqui. Bagaceira, acolá. Um chicharrito frito, frio, ou de escabeche, uma morcela de Santa Maria, um queijinho fresco, avermelhado em pimenta da terra, a massa sovada. Vai de tasca em tasca. Pergunta.

Ninguém conhece Beatrice. 

Indicaram-lhe, por fim, a Adega. Talvez aí, no Largo da Igreja de S. Mateus da Terceira.

E lá está ela. Atrás do balcão, à entrada. Jovem. Com um sorriso de espera. Isabel. Responde assim à pergunta do Poeta. Beatrice, ouve ele. E apresenta-se. Pablo. Vem pelas Lapas, diz. Quere-as pequenas. Atravessa o corrimão das mesas. Olha as paredes, testemunhas de muitos passados. Senta-se ao fundo. No canto. Chegam-lhe as Lapas alinhadas sobre a grelha, a pedirem dedos que façam de pinças que as libertem e lábios sequiosos que não se neguem a sorvê-las com mal disfarçado ruído. 

– E, para beber? – Pergunta ela.

Das curraletas do Pico traz o Poeta a frescura do branco e pede, sem hesitar. Bebeu-o noutro entardecer, a acompanhar a saga do baleeiro, servida à mesa, nas palavras de Dias de Melo. Bebeu-o, noites dentro, escutando o balouçar das ondas no balançar da vida, o ir e voltar, o ir sem regresso, as Américas do outro lado da caça. A força das raízes. Ali, é à pedra que as raízes se agarram mais, e quem nasce no Pico, nunca parte sem regresso. Longas são as conversas. Romana Petri. Também ela, com Regresso à Ilha. É nisso que o Poeta pensa quando, à porta da Adega, assoma o Carteiro. Beatrice-Isabel está fora de cena, adiantando o pedido que trará a abrótea par dar seguimento às Lapas, dispensados que foram o lírio e o boca-negra. 

À entrada, logo à esquerda, a mesa alongou-se para receber os comensais. Vêm de fora. São os senhores das metáforas, também elas ilhas no meio das palavras, com os seus sóis e nevoeiros, as suas brumas, os seus sons. Vieram de outros tempos e de outros lugares. Muitos são gente da Ilha. Novos e velhos. Nemésio, Emanuel Félix, Álamo de Oliveira, Joel Neto, Rui Rodrigues, Marcolino Candeias e outros tantos, todos unidos no abraço aos convidados. Falam alto. Ouve-se o que dizem:

–  A Graciosa é a Ilha, em todo o mundo, onde há mais pianos por habitante. 

Lá de dentro, da cozinha, ouve-se cantar. Morte que mataste lira. Credo, mulher! Isso, não. Olhos Negros! Ou, então, O Bravo. São palavras de bastidor. À frente, na mesa, é ainda de música que se ouve falar, mas para dar outras aptidões aos convidados, gente de outros tempos:

– Cento e duas bandas filarmónicas; sessenta e oito grupos folclóricos; quarenta e três grupos de teatro amador. É obra!

Admiraram-se os convidados. O Príncipe Alberto. Ele, que tanto sabia do mar. Admirou-se menos Raul Brandão, mais ligado às coisas da terra. Já não se admirou Tabucchi, viajante de muitas terras e de muitos mares. 

Há um forasteiro, isolado noutra mesa, que faz ouvir a recordação que guarda de outra vinda, para o Carnaval na Terceira, e da conversa com o taxista que, terminada a folia, o devolveu ao aeroporto:

– Diga-me – perguntou – quantos Bailinhos houve este ano?

– Cinquenta e quatro, senhor.

– Ena! E quantas pessoas se envolvem nos Bailinhos?

– É para aí metade da Ilha, senhor.

– Então e a outra metade?

– A outra metade, senhor, vai ver os Bailinhos.

– Mário! – disse o homem. Diante do Poeta, quando este, distraído com a conversa alheia, só agora o via, de pé, à sua frente e lhe perguntava pelo nome. 

Tal como Mário Ruoppolo, o outro, também este trazia «os sons das pessoas, da natureza, e da vida na ilha». Da vida nas ilhas. Tudo gravado. Para enviar ao poeta. Ao outro. Eram Os Sons Primitivos da Terceira, de São Jorge e do Corvo. A mulher que corre atrás das galinhas, zangada com elas; a roda do carro puxado a boi, a marcar o compasso; o mando do pescador, na recolha das redes, a fazer de tenor. 

Da mesa grande chegava o nome de Francisco Lacerda, alguém falava da viola da terra e não faltava quem sonhasse com um Béla Bartók, para projectar os sons genuínos das Ilhas até aos horizontes sofisticados da música erudita. E todos acordavam nesse friso constante de uma cultura profunda gravado a fogo na História Açoriana, talhada entre o Céu e o Inferno e para cuja gente a fé, a crença, a festa e a cultura foram, e são, alimento, esperança e futuro. O Poeta sabe-o bem. E, por isso, deixa-se sentir o que sonha, como se o sonho fosse, ali, apenas uma outra face da realidade. 

Das Lapas, não havia já rasto. Para a Abrótea, o Poeta pediu outro talher. E fez sinal a Mário para que se sentasse e o acompanhasse na refeição. Pablo! Apresentou-se. Mário já o sabia. O açoriano identifica mais depressa um poeta do que um doutor. E, também ele, quis ouvi-lo:

– «Para escrever poemas basta deambular pela praia, onde as metáforas ocorrem automaticamente». Era ainda o Poeta a ensinar o Carteiro a conquistar Beatrice. Mário apenas sorria. Sabia que a madrugada ia carregar o nevoeiro e que este, depois de repousado sobre a ilha, iria, então, levantar-se e dar lugar ao sol. E o sol viria lentamente, afeiçoando os olhares à luz suave da manhã. A ilha voltava a ser ilha. São Mateus acordaria apenas São Mateus da Terceira. 

Em São Mateus não havia carteiro. 

O Poeta, que não tinha nome, ia deixar a Adega. E ouviria, à saída, Isabel despedir-se de Mário:

– Adeus, Isabel! – Diria ele.

– Adeus, Jorge! – Diria ela.

Nas mãos, o Poeta conservava o CD com os sons primitivos açorianos. Caminhou na noite. Na noite de São Mateus ninguém se livra de ser poeta. E ele teimou. Era o CD a prova de que Jorge era Mário e de que Mário era o Carteiro de São Mateus. E deixou-se deambular como se se perdesse correndo atrás das galinhas, no Corvo, ilha remota, onde um velho cabo do mar o esperava para o confrontar com a dúvida da verdade do que via.

Nove de Junho. Dia da Europa. O Corvo fora escolhido para local das comemorações. E vieram todos. Políticos. Académicos. Altos Magistrados. Militares. Gente de outras bandas e outros saberes. Na Ilha, mal chega a comitiva, todos são comitiva. A missa vai receber quem chega de fora, e a igreja dá-lhe a esquerda para se sentar. A direita é reservada aos corvinos. Elas, as mais cansadas, recolhem-se nos lenços negros; eles, de pé, marcam o poder no território. Do altar, o Padre celebrante lamenta a retirada do Cristianismo do preâmbulo da futura Constituição Europeia. Os corvinos olham, de soslaio, para a esquerda. Os da esquerda olham para o Santíssimo, lá ao fundo, no altar. 

O almoço reconcilia todos.

No meio do povo circula Jean Pierre. É jovem. Suíço de origem. Neutral, portanto. Está ali como prenda de família a louvar a licenciatura concluída. Uma ilha no oceano, tirada à sorte, durante quinze dias. Foi o que escolheu. Saiu-lhe o Corvo. Tal como o Cristianismo, também ele estava fora do preâmbulo da Europa. Nada que o excluísse do almoço.

Os grandes nomes ficaram para a sessão solene, no salão nobre dos Paços do Concelho. Jean Monet, Robert Schuman, outros, todos acorreram aos discursos de Políticos e Catedráticos, perante o sorriso instalado nos rostos atónitos dos presentes. Que mais Europa poderia imaginar-se ali?
E o Poeta partiu para São Miguel, na certeza de que Mário e Beatrice não tinham sido uma simples ilusão.

Esperava-o o Encontro dos Poetas. Natália, Antero, Roberto de Mesquita, Pedro da Silveira, Vasco Pereira da Costa, João de Melo, Daniel de Sá, Martins Garcia, os que vinham do jantar de São Mateus, e tantos mais. Na Capital. No extremo da Europa. Nesse lugar mítico, onde vulcões e sismos, festas e lutos, agnósticos e crentes, letrados e não letrados criam uma cultura densa de valor estético, antropologicamente significante, erudita na qualidade do que cria. São eles Os Romeiros do futuro. Traziam a sua palavra.

O Poeta ia falar do sonho. 

Escolhera, como tema, O Carteiro de São Mateus.

Álvaro Laborinho Lúcio
Coimbra, Outubro de 2021

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ÁLVARO LABORINHO LÚCIO nasceu em 1941. Magistrado de carreira, é Juiz Jubilado do Supremo Tribunal de Justiça. De 1980 a 1996, exerceu, sucessivamente, as funções de Director do Centro de Estudos Judiciários, Secretário de Estado da Administração Judiciária, Ministro da Justiça e Deputado à Assembleia da República. Entre 2003 e 2006, ocupou o cargo de Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores. Com intensa actividade cívica é membro dirigente, entre outras, de associações como a APAV e a CRESCER-SER, de que é sócio fundador. Com artigos publicados e inúmeras palestras proferidas, é autor de livros como A Justiça e os Justos (1999), Palácio da Justiça (2007), Educação, Arte e Cidadania (2008), O Julgamento – Uma Narrativa Crítica da Justiça (2012), Levante-se o Véu, este em co-autoria (2011), e ainda os romances O Chamador (2014), O Homem Que Escrevia Azulejos (2016) e O Beca da Liberdade (2019).

Premiado na área da Psicologia, foi-lhe atribuída, em 2016, pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, a Medalha de Reconhecimento; e, em 2017, pela Associação Pró-Inclusão, a medalha de mérito. 

Foi agraciado por Sua Majestade, o Rei de Espanha com a Grã-Cruz da Ordem de D. Raimundo de Peñaforte, pela sua acção como Ministro da Justiça no âmbito da União Europeia; e por Sua Excelência o Presidente da República Portuguesa, com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, pela sua acção como Ministro da República.

Entre 2013 e 2017, foi Presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho. É Membro Eleito da Academia Internacional da Cultura Portuguesa. 

É Professor Coordenador Honoris Causa do Politécnico de Leiria e, em Fevereiro de 2019, foi-lhe atribuído, pela Universidade do Minho, o título de Doutor Honoris Causa em Ciências da Educação.