Poema

Luísa Ribeiro
#Natureza humana

o zénite de Bruegel está na caverna unido ao poema que ajuda
o dia a passar como ajudavam os legos
da infância e os puzzles

é difícil não morrer com saudades de tudo o que ficou dentro do jazz
dos cadernos cheios de tinta
e do coração anotado

és tu a dançar Garbarek no cimo das escadas
com o erotismo soletrado nas mãos
tu com o odor do pão e dos figos

outro tu a lançar flores por todo o sítio
onde eu iria passar
tu nos ensaios de piano enquanto fazias horas
para eu chegar e elevarmos a pulsação até ao arrepio
tu a chorar a nossa impossibilidade

outro tu que eu magoei com medo
de seres uma gaiola

tu
outro tu
a minha Mãe a cantar parabéns todos os últimos dias
o meu Pai em sofrimento sem o seu filho mais velho
sim
o meu irmão morto
o pânico do meu irmão morto

os meus amigos e as nossas conversas diárias:cinema política manifestações história muita música
muitas cervejas os
filhos pequenos dos amigos
os serões no jardim
o riso cheio de energia
a Mãe dá licença
quantos passos?
três de poeta

tu e os nossos filhos
esta boa família para sempre

e agora esta súbita caverna:
a pele a enrugar
a confiança abatida pela maldade
que eu desconhecia e que tenho de aprender
ao mesmo tempo que tenho de aprender
a envelhecer

eu que já digo: mete a panela na televisão
leva os sapatos que está frio

eu a desaprender e dentro de mim algo a martelar:
não confies
não confies

eu fora de ti
cheia de análises clínicas
exames aos olhos
tratamentos para cada órgão do corpo

eu repentinamente metida na vitamina D
no potássio
na taquicardia

eu fora de ti
a fazer a curva sem saber
o que se passa deste novo lado
e a sofrer com saudades do passado
enquanto as minhas pupilas se dilatam
ao ouvir Garbarek

hasta siempre

© Mateus Ribeiro Gomes
© Mateus Ribeiro Gomes

Luísa Ribeiro nasceu na ilha Terceira. Tem dois livros de poemas publicados e está representada em diversas revistas e antologias, quer no país quer no estrangeiro.