
Poema
o zénite de Bruegel está na caverna unido ao poema que ajuda
o dia a passar como ajudavam os legos
da infância e os puzzles
é difícil não morrer com saudades de tudo o que ficou dentro do jazz
dos cadernos cheios de tinta
e do coração anotado
és tu a dançar Garbarek no cimo das escadas
com o erotismo soletrado nas mãos
tu com o odor do pão e dos figos
outro tu a lançar flores por todo o sítio
onde eu iria passar
tu nos ensaios de piano enquanto fazias horas
para eu chegar e elevarmos a pulsação até ao arrepio
tu a chorar a nossa impossibilidade
outro tu que eu magoei com medo
de seres uma gaiola
tu
outro tu
a minha Mãe a cantar parabéns todos os últimos dias
o meu Pai em sofrimento sem o seu filho mais velho
sim
o meu irmão morto
o pânico do meu irmão morto
os meus amigos e as nossas conversas diárias:cinema política manifestações história muita música
muitas cervejas os
filhos pequenos dos amigos
os serões no jardim
o riso cheio de energia
a Mãe dá licença
quantos passos?
três de poeta
tu e os nossos filhos
esta boa família para sempre
e agora esta súbita caverna:
a pele a enrugar
a confiança abatida pela maldade
que eu desconhecia e que tenho de aprender
ao mesmo tempo que tenho de aprender
a envelhecer
eu que já digo: mete a panela na televisão
leva os sapatos que está frio
eu a desaprender e dentro de mim algo a martelar:
não confies
não confies
eu fora de ti
cheia de análises clínicas
exames aos olhos
tratamentos para cada órgão do corpo
eu repentinamente metida na vitamina D
no potássio
na taquicardia
eu fora de ti
a fazer a curva sem saber
o que se passa deste novo lado
e a sofrer com saudades do passado
enquanto as minhas pupilas se dilatam
ao ouvir Garbarek
hasta siempre

Luísa Ribeiro nasceu na ilha Terceira. Tem dois livros de poemas publicados e está representada em diversas revistas e antologias, quer no país quer no estrangeiro.