Rabo torto no Japão

Valquirio Barcelos
#Crónica

Em 2004, há precisamente quase dezassete anos – dependendo da data em que o leitor estiver a ler este texto – este açoriano, nascido e criado na ilha Terceira, embarcou para São Miguel rumo a uma nova aventura que vinha em duplicado: tirar a licenciatura de Gestão na Universidade dos Açores e longe da minha zona de conforto, sem a comida da mamã. Acabando, posteriormente, por ficar a viver na ilha que tão bem me acolheu.

Gostava de dar ênfase ao facto de não me ter categorizado como terceirense, mas sim como açoriano nascido na Terceira. Apesar de gostar de um certo bairrismo saudável e perceber que cá nos Açores usamos muito a naturalidade para nos identificar numa conversa, tenho a felicidade de conhecer bem todas as restantes ilhas do arquipélago e, com isso, apreciar muito mais o “conjunto” de especificidades de cada ilha, formando esta açorianidade tão peculiar e característica.

A cultura, os comportamentos peculiares, as tradições, pronúncia, vocabulário tão nosso, gastronomia, música, artes e a própria vestimenta nos diferenciam como povo e nos dão a identidade que tão bem se conhece. Saliento que este conjunto de características acaba por nos igualar e unir. Para que haja uma perceção mais refinada acerca da cultura numa sociedade, acho sempre interessante contar uma história decorrida na Segunda Guerra Mundial, onde, aquando do desejo de se cortar investimentos na cultura para se poder investir no departamento de defesa inglês, Churchill recusou este corte, argumentando que lutavam precisamente para defenderem a sua cultura, a sua identidade como país. E quanto aos Açores, desengane-se quem pensa que cultura é plantar milho e batatas ou confunda cultura com festivais de verão. A cultura dos Açores é mais do que isso, e conseguimos perceber que é a junção de características que nos une como povo. Isso foi provado nesta altura de guerra pandémica, onde o investimento na cultura teve um decrescimento acentuado, acabando por se notar guerrilhas online e uma separação de um povo. A cultura une, porque a cultura uniformiza. 

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Retomando o assunto inicial, durante a minha experiência em São Miguel, sempre senti por parte dos micaelenses uma certa admiração da forma de ser e brilho cultural que é tão característico dos terceirenses. Todas as ilhas têm as suas belezas culturais, indubitavelmente, no entanto os terceirenses gostam de manifestar estas belezas de forma mais proeminente e de o fazer, também, com todas as outras ilhas. Como disse, sou açoriano, nascido na Terceira com todo o conjunto de hábitos terceirenses que me fazem valorizar cada pedaço daquilo que são os Açores. E, por isso, ver este intercâmbio cultural, que a mim me agrada, onde as romarias já se fazem na Terceira, a passagem dos bailinhos e marchas para outras ilhas, faz sentir que a cultura fica mais assegurada. Propagada e assegurada! 

E foi na universidade que senti, primordialmente, este encontro cultural pelo facto de a Universidade dos Açores receber alunos de todas as ilhas. No processo de adaptação à nova realidade destes alunos, há um recolher de novas formas culturais de agir e um transferir das que vêm com eles. Essa passagem de particularidades culturais acaba por criar e globalizar uma nova cultura nos Açores e em cada ilha – cultura açoriana – que não se limita pelas divisões territoriais, que é um todo pertencente a todos. E vamos além-fronteiras, por exemplo, temos das melhores tunas do país, que foram pioneiras no uso da viola da terra. Recordo-me de introduzir as cantigas ao desafio nos certames académicos, onde colocamos todos os tunantes do país a fazer o mesmo. Os Tunídeos, por exemplo, foram a primeira tuna do país a introduzir os sketches humorísticos, provavelmente inspirados nos entrudos açorianos. 
Porque estou a focar-me naquilo que foi a universidade? Porque da mesma forma que a Universidade dos Açores foi, digamos, uma espécie de capital da cultura de vários jovens de todo o arquipélago, Ponta Delgada, por todas as suas características e tudo o que representa, torna-se um ponto de encontro para muitos outros ilhéus. E quer estabelecer-se como Capital Europeia da Cultura onde representará toda uma região, com legitimidade para tal e não só pela riqueza cultural invejável, mas também pela aquisição, através dos intercâmbios, de cultura de todas as ilhas e de todos os açorianos para um único ponto. Ponta Delgada deixou de ser dos Micaelenses passando a ser dos Açores.