Um lugar onde não fazer nada

Alexandre Borges
#Crónica

Escrevo-lhe, caro leitor, em nome do direito a descansar depois do ponto final.

Em nome da preguiça, que como dizia o Quino, é a mãe de todos os vícios, mas uma mãe é uma mãe e há que respeitá-la.

Em nome da certeza antiga de que a cultura nascia do ócio.

Os Açores foram, final e fatalmente, apanhados pelo mesmo vento encanado positivista que obriga a contemporaneidade a estar sempre a fazer alguma coisa – e a tirar fotografias que o comprovem, ou terá sido o mesmo que não ter feito nada. O mesmo que não ter existido.

O contemporâneo tem horror ao nada. Ao tédio. À ideia de perder tempo. E é precisamente por isso que se entedia. É por isso mesmo que o perde.

Desde criança, o cidadão do século XXI tenta empanturrar as suas crianças com tudo o que lá couber: a escola, o ballet, a música, a natação, os patins, a pintura, a meditação, o ténis e o inglês. Mais as explicações e todos os brinquedos e todos os jogos de computador e todas as festinhas e todos os passeios. Planos B, C, Y e Z que evitem a todo o custo a tragédia máxima de o petiz se aborrecer.

Naturalmente, o espécime adulto leva a vida da mesma forma. Não se contentando com o trabalho e o ginásio e o “tempo de qualidade” em família, mas precisando também do workshop e do padel e do pilates e de sete plataformas de streaming, e do programa cultural, e do restaurante novo a que ainda não foi e do brunch e do rooftop e do fim-de-semana fora e da escapadinha e do retiro e do team building. Tudo, é claro, para culminar nas férias, onde há que aproveitar o mais possível, e ir, e fazer, e consumir, e tirar muitas fotografias, e pôr muitos pins no mapa.

Agora, as ilhas que-já-não-são-desconhecidas parecem apanhadas na mesma vertigem. Não é o problema de se ser um sucesso turístico, que não é problema algum, antes reconhecimento e oportunidade para criar empregos, gerar desenvolvimento e subir a fasquia da exigência connosco próprios; é o problema de sentirmos que temos de nos fazer interessantes. Como se não o fôssemos já. Para responder à expectativa do contemporâneo cheio de estrica e pavor a perder alguma coisa.

Dizem que já não basta o destino. Que, hoje, o consumidor procura “experiências” e “storytelling” e coisas “disruptivas”. Pois, eu sonho com o momento em que o copo, finalmente, transborde e possamos fazer campanhas turísticas com motes como: “um sítio onde não se passa nada”. “Venha não fazer nenhum”. “Açores: a melhor ponta dum chaveiro da Europa!”

Quando eu crescia, uma pessoa não tinha de subir ao Pico só por ele estar ali. Não tinha de ir fazer mergulho nem trilhos. Escrevo-lhe em nome do direito a continuar a viver nesse tempo, se me apetecer. A voltar de férias sem se envergonhar de não ter nada para contar. Pelo direito a perder tempo. A ficar a ler com a chuva a bater na vidraça. A ver o mar rebentar contra a costa. A parar no café. A que nem tudo tenha de ter sex appeal (o sex appeal, às vezes, consegue ser muito cansativo). Pelo direito a não ter de encolher a barriga na praia. À desobrigação moral de fazer coisas novas. À não inscrição no momento. A não ser interessante.

Proponho, caro amigo, que criemos a indústria do turismo do nada. Pistas para fazer nada, lojas que vendem todo o equipamento para o nada, guias, roteiros, vídeos de gente a não fazer patavina. E vereis quanta literatura, música, teatro, pintura, escultura, quanta fotografia e cinema e dança e banda desenhada sairá daqui.

Percebo que se vá a Nova Iorque e a Paris e haja muito para fazer. Mas a minha ilha? A minha ilha costumava ser um dos melhores sítios do mundo para não fazer pevide. Ser folha, secar e cair. Ir de férias pastar, ruminar os dias como as vaquinhas, ficar de molho, amolecer com o capacete, desinchar, desmontar do comboio frenético do tempo. Pôr a vida que levamos temporariamente no cabide. Escapar.

Quero uma aplicação que me motive a dar o menor número de passos possível nas férias. Muitas entradas do Google e do Tripadvisor a recomendar: “10 sítios que pode absolutamente perder”, “15 coisas que se pode dar ao luxo de ignorar completamente”, “tudo aquilo para o qual se pode estar positivamente a borrifar” e outros opúsculos que nos libertem antecipadamente da culpa de não esgotar tudo quanto existe.

E depois, vamos dar um mergulho, comer umas cracas e discutir qual a melhor ilha para uma pessoa se sentar a ler.

@ Luís Godinho
@ Luís Godinho


Alexandre Borges

Escritor e argumentista natural de Angra do Heroísmo (1980). Trabalha habitualmente em televisão, teatro e na imprensa escrita. É director criativo de uma agência de comunicação e formador de argumento. Lançou, em 2021, Atenção ao Intervalo entre o Caos e o Comboio (Ponta Delgada, N9na Poesia / Letras Lavadas).

*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia