Um roteiro do arco da velha

Patrício Vieira
#Vamos desopilar

Na freguesia de Santa Bárbara, durante as festas de verão, existe uma energia diferente, tal como é normal em todas as pequenas localidades. As casas estão frescas e os pátios arranjados, prontos a receber visitas. Há luzes penduradas e o ritmo da vida desacelera consideravelmente. Passear por uma destas zonas, num destes dias, é uma excelente forma de conhecer a identidade de um povo. 

Quando Yuri e Boris passaram em frente à igreja, só queriam tirar fotos. Eram 10 da manhã quando estacionaram o carro. O dia estava só perfeito. Tiraram boas fotos, principalmente Boris, que era amante da fotografia. Ao sair da igreja repararam num monte de homens que, de forma barulhenta, se agrupavam à volta de uma estrutura de madeira que estava no chão. Ali, quase no meio de uma estrada que agora era uma espécie de estaleiro. As mulheres e homens e mais velhos tinham bancos e estavam a cortar “cedros”, os mais novos moviam uns enormes blocos de pedra. Depreenderam que serviriam para suportar a tal estrutura de madeira. 

© Ricardo Laureano
© Ricardo Laureano

Um dos homens fez-lhes sinal, como que a perguntar se não queriam ajudar. Os outros riram de forma descontraída. Todos ficaram espantados quando Yuri e Boris pousaram as mochilas e se agarraram aos massivos blocos. Foram pouco mais de dois minutos de esforço, mas que os fez suar. Finda a tarefa, houve uma celebração conjunta, cheia de risos e braços dobrados a contrair os bíceps. Os estrangeiros, como foram batizados, foram saudados e claro que houve um brinde.

Durante os minutos seguintes foram tentando perceber para que serviria todo aquele trabalho e foi-lhes explicado que era um arco para a procissão do dia seguinte. A estrutura tem cerca de 5,5m, é de madeira e depois é forrada com ramos de criptoméria (chamados de cedros) e algumas flores. Com um pé em cada lado da estrada, tem altura e largura suficiente para o trânsito fluir. Cerca de oito pessoas são responsáveis por fazer o “arco”. As enormes pedras que o sustentam são trazidas por um trator que chega quando o seu proprietário tem tempo. É levantado com força braçal, embora às vezes se faça batota, usando um empilhador ou algo do género. Fazer o arco é um dia de festa, com comida e bebida em abundância. Ao grupo de pessoas responsáveis pelo empreendimento, geralmente juntam-se amigos e curiosos.

Boris preparava-se para tirar uma foto quando estalou um foguete não muito longe dali. Retirou o olho direito do visor da máquina e viu um homem a correr em direção a uma casa. Todo o trabalho parou nesse momento. O homem voltou com um foguete na mão, pediu um cigarro, ateou o foguete e à voz de “fogo para o ar” lançou-o para explodir segundos depois sob um coro de gritos e aplausos. Mais um brinde. Yuri chamou Boris com uma informação nova. O primeiro foguete tinha vindo de um outro arco ali perto. Rapidamente foram investigar essa situação, incentivados pelos já amigos. Mas levaram bebidas “para a viagem”. Foram a pé, porque já não se sentiam capazes de conduzir. A hospitalidade aqui ignorava por vezes a saúde. Um preço muito caro, mas a quem ninguém ligava. 

© Ricardo Laureano
© Ricardo Laureano

Andaram cerca de 500 metros e depararam-se com um cenário igual. Mais um monte de gente reunida a trabalhar noutro arco. Mais algazarra, mais alegria, mais brindes. Foram novamente convidados a participar nos trabalhos e fizeram-no com alegria. Boris registou tudo. Ouviram outro foguete. Havia cinco arcos a serem construídos em simultâneo e uma espécie de competição saudável entre eles. O ambiente era igual em todos. Partilha era a palavra de ordem. Por volta das cinco da tarde, Boris e Yuri tinham corrido todos os arcos e estavam encantados, cansados e um pouco embriagados. Regressaram ao primeiro arco mesmo a tempo de ouvir a salva de foguetes que assinalava o fim dos trabalhos. Foram arrastados para a garagem do Basílio onde estava muita gente a ordenar uma mesa farta, cheia de pratos confecionados por amigos, vizinhos, curiosos etc. Comeram pouco porque tinham passado o dia a comer e a beber e foram severamente repreendidos quando quiseram pagar! Acabaram por adormecer em cima de uns bancos enquanto a festa ia serenando.

Por que é que as pessoas se dão a este trabalho? Porque sentem que são parte integrante da vida da comunidade. Porque sabem que são peças fundamentais nesta engrenagem social que põe em andamento estes pequenos lugares. Porque, participando podem deixar a sua marca pessoal numa construção que é de todos. E, sobretudo, porque são felizes ao fazê-lo.

Quanto a Yuri e Boris…estão a recuperar. O problema é que logo à noite há festa…

© Ricardo Laureano
© Ricardo Laureano
© Ricardo Laureano
© Ricardo Laureano

Nota: se participar na feitura de um dos referidos arcos, seja responsável, beba com moderação.

*Nenhum turista se embriagou durante os eventos que inspiraram esta história.


Patrício Vieira tem 35 anos, é natural e residente da freguesia de Santa Bárbara, na zona oeste da ilha Terceira. Trabalha num projeto de promoção da saúde e tem como passatempo escrever rábulas, pequenas peças de teatro e músicas. É rodeado de composições desse género que se sente bem, tentando colocar alegria e boa disposição em todas elas.