Umbigo Micaelense

Pedro Almeida Maia
#Crónica

No momento em que se acendeu a luz verde do semáforo, nem tinha decorrido um microssegundo, irrompeu uma buzinadela enraivecida atrás de mim. Era uma descarga tão obstinada como se aquele espécimen com olhos raiados de sangue só conseguisse comunicar por Código Morse. Tenho o hábito de desaprovar a impaciência dos outros — considero-me, eu próprio, impaciente — mas o dia estava soalheiro e eu tinha dilemas mais importantes para resolver do que a selva ruidosa em que se tem transformado a minha cidade-bairro.

Para espanto de toda a gente, em vez de arrancar em fúria e com os pneus a esfumaçar, o primeiro condutor da fila abriu a porta do veículo e apeou-se. Tinha ombros duros, torso aprumado e caminhava firme como uma pantera. Mas as mãos iam descontraídas, com a serenidade a marcar-lhe um passo após o outro. Era como se Deus o tivesse incumbido de ensinar a integridade ou de espalhar a mensagem da plenitude. Ao passar pelo meu carro, notei-lhe o pormenor do bigode a sobrepor-se ao lábio desinquieto, trémulo até, além do bálsamo a Old Spice que deixou espalhado. Uma pessoa que usa fragrâncias daquelas costuma primar por valores clássicos, como a importância de um aperto-de-mão num negócio fechado.

Enquanto dois automobilistas rompiam a fila, naquela gana pela bênção do rei-semáforo, assisti pelo retrovisor à aproximação do benfeitor ao condutor assanhado. O buzinador espumava pela boca «mexe contigo, mamão», mas o de bigode pregava bom-senso, argumentando que «a gente vive numa ilha, somos um pontinho no meio do mar» e que, mesmo ali, no final da rua, via-se vacas a pastar, na paz de Nosso Senhor, e os apartamentos tinham vista para os campos de milho. «Pra que é essa agonia toda, sagrado? Pra chegar depressa à estufa dos ananases?», insistiu ele.

Foi ao ouvir aquela discussão que regressei à minha dualidade filosófica de se viver em ilhas, em especial nos Açores e mais concretamente em São Miguel. Queremos muito ser ilhandeses com qualidade de vida, assim o divulgamos: «aqui é que se vive bem, fica tudo a dez minutos, paramos o carro em frente à praia, temos tudo o que é preciso, está-se em paz e longe da guerra». Porém, a verdade é que criamos as nossas próprias guerras, queixamo-nos de que falta uma série de coisas, estamos sempre desejosos de viajar para longe, metemos semáforos nos cruzamentos e — não sejamos hipócritas — já quase não se consegue estacionar o carro em frente à praia.

Muitas vezes questiono o porquê de, sobretudo neste bairro de São Miguel, vivermos como se fôssemos uma ilha-continente. Andamos atarefados como formigas, apressados para o próximo compromisso, atrasados para uma reunião, sem tempo para dar bons-dias, sem disponibilidade para os vizinhos, para a família muito menos, e os amigos à espera daquele café — o tal café prometido quando ainda havia temas em comum. E como se isso não bastasse, encaixamos afazeres desnecessários nas manhãs, nas tardes e nos serões, para depois, no fim, irritarmo-nos quando os trajetos de carro demoram mais do que os habituais dez minutos. Às vezes, parece-me que os micaelenses desejam uma vida agitada, sentir a pressão da cidade grande, que almejam endireitar as costas perante a metrópole, comparar-se com Lisboa. Mas isso é o mesmo que gerar o caos numa casinha de bonecas, ou colocar um relógio numa gaiola de periquitos: um comportamento psicossocial, no mínimo, intrigante.

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Quando o micaelense visita outra ilha açoriana, perguntam-lhe se é a primeira vez, se já lá tinha ido antes; mas ele raramente pergunta o contrário, se conhecem São Miguel. Assume que sim. No meu primeiro emprego, havia quem dissesse «telefonaram das ilhas», quando se referiam a clientes «das outras ilhas». Até herdámos do nosso recente passado a alcunha de “almas de pau”, indicador de frieza na relação de alteridade com os semelhantes, de indolência perante o resto dos bairros.

Diga-se então, sem receios, que o micaelense tem um problema de umbigo. Não é intencional, nem sequer maldoso, mas existe, e vale a pena debruçarmo-nos sobre isso. Almejo encontrar explicações para o fenómeno, resolvê-lo de uma vez por todas, como se fosse o dilema fundamental do nosso insulismo, da nossa existência de ilhéus. Para isso, defenderei a teoria de que os micaelenses vivem na ilha com menor sensação de arquipélago. Falta-nos vizinhança.

Se uma ilha é uma porção de terra rodeada de mar por todos os lados, nove ilhas são nove porções de terra rodeadas de mar por todos os lados. Mas se, entre si, estiverem próximas o suficiente, chamamos-lhes de arquipélago. Quão próximas? Próximas ao ponto de as podermos ver no horizonte? — Não ambiciono contestar as definições de ilha nem de arquipélago, muito menos arrojar-me em lições da Nissologia. Quem sou eu para isso? Os estudiosos da “ciência das ilhas” fazem-no muito melhor do que um ficcionista. — Mas vejamos: nos Grupos Ocidental e Central, de qualquer ilha avista-se, com grande facilidade, pelo menos uma outra. Inclusive o Corvo, território tantas vezes acusado de isolamento, tem as Flores ali tão perto. No Grupo Central, avistam-se quase todas as outras, diariamente, a qualquer hora do dia e da noite, salvo naqueles nevoeiros cerrados e capacetes de nuvens — aí, nem vemos os próprios pés. O lugar onde mais bebo a sensação de arquipélago é junto ao famoso canal: o Pico a saudar os faialenses e o Faial a cortejar os picoenses.

Então, e neste Grupo Oriental, qual é a relação visual ou de proximidade? Existirá a mesma sensação de arquipélago? Da ilha de São Miguel avista-se apenas Santa Maria, e vice-versa, mas com alguma dificuldade. Quando sucede, faz-se um espanto, arregala-se os olhos, aponta-se o dedo ao horizonte, avisa-se os filhos e a sogra: «Ólhó-lhó, vê, vê, vê», mas depois fica-se absorto. Talvez porque nem sequer é um bom presságio para o micaelense. Como diz o ditado: «Santa Maria à vista, água na crista».

Os mais puristas dirão que, de São Miguel, avista-se o Grupo Central, sim, mas eu nem quero explicar a complexidade dessa proeza. Basta pensarmos que, para ver Santa Maria, é necessário estar em altitude e as condições atmosféricas devem ser muito, muito boas. Dependendo de onde se vive na ilha, o micaelense pode passar semanas sem sinais da ilha vizinha – e ainda há quem nunca a tenha visto no horizonte!

Num tempo em que se fala da união entre os açorianos em prol de objetivos comuns, sobretudo a cultura, mais recentemente – que bem sabemos tratar-se de uma missão hercúlea, não só por questões históricas, geográficas, mas também sociopolíticas – é importante realçar o que nos liga. Não me refiro apenas ao canal de televisão, às rádios e jornais, à universidade ou à companhia aérea regional; não basta existir quem forneça bens em todas as ilhas, governantes que as visitam e as entrelaçam com promessas eleitorais, compêndios literário-musicais, guias turísticos e inventários antropológicos. Os açorianos têm de se ver, de se tocar e cheirar, beijar na boca, abraçar-se, fazer sexo no areal, cantar na mesma nota, bailar ao mesmo ritmo. Tal como o projeto da Europa continua a ser um desafio de união na diversidade entre os diferentes países do velho continente, também um arquipélago como o nosso representa esse mote, à dimensão proporcional de ilhas, ou bairros. Talvez os Açores sejam mesmo a melhor miniatura para mostrar a diversidade cultural à Europa como capital da cultura – desde que se aviste Santa Maria mais vezes, para bem dos umbigos micaelenses.

O semáforo estava vermelho outra vez. O condutor austero recostou-se no assento da viatura, como se interiorizasse a serenidade das vacas atrás de si, a pastar erva feliz, e o ser celestial regressou ao seu carro, espalhando o perfume da perseverança e faltando-lhe apenas uma aura que o diferenciasse dos comuns-mortais. Quando a luz verde acendeu, ninguém buzinou. Arrancámos todos com a calma e o umbigo de quem vive rodeado de ilhas por todos os lados.


Pedro Almeida Maia (n. 1979) é natural de Ponta Delgada, estudou psicologia organizacional em Coimbra e Barcelona, trabalhou na Irlanda e regressou aos Açores. Realiza incursões em diversos estilos, da música à poesia, do ensaio ao argumento. Tem cinco romances publicados, alguns no Plano Regional de Leitura, sendo Ilha-América (2020) o mais recente. No conto, participa mais proximamente na antologia internacional do PEN Clube Os Dias da Peste (2021). Iniciou-se na crónica com a rubrica “Pavilhão Auricular”, seguindo-se “Cronicista” e ultimamente “Recursos dos Humanos”, entre outras contribuições regulares.