Vivendo a diversidade dos bairros

Gilberta Rocha
#Crónica

Desde há muitos anos que o estudo da unidade e diversidade dos nossos 9 bairros tem sido a base do meu trabalho – uma investigação que vai percorrendo as tendências da população dos Açores desde meados do século XIX, com uma ou outra aproximação, não sistemática, a épocas mais recuadas. 

Em mais de 40 anos de trabalho julgo que esta é a ligação mais próxima que tenho com estes territórios: observando as suas transformações sociais, o crescimento demográfico de uns, a diminuição de outros, em ritmos distintos e temporalmente diferenciados, o que me levou a considerar a nossa terra global como um arquipélago plural. Plural na dimensão e dispersão geográfica, na evolução demográfica e social, condicionadas na especificidade com que viveram os vários momentos históricos de um percurso coletivo. 

 Mas não é esta, naturalmente, a única ligação física ou intelectual e emotiva, desde logo porque tenho a felicidade de ter estado em todas eles, embora mais nuns do que noutros, em visitas tanto de trabalho, como de lazer. Convenhamos mais trabalho do que lazer, ou melhor, tendo como motivo principal o trabalho, mas que foram também de lazer.

 Saí de São Miguel para visitar pela primeira vez bairros vizinhos ainda nos anos 50, acompanhada da minha família, julgo que com 6 anos de idade, rumo à Terceira, Faial e, e, talvez também São Jorge no navio Cedros. As recordações desta viagem têm menos a ver com os bairros em si e mais com peripécias e brincadeiras com o meu irmão e o primo João. Mas tal como foi referido por Reis Leite o enjoo a bordo foi marcante, mas no caso não para minha mãe, a única que se manteve firme. Firme não será bem o termo pois se o seu problema não era o enjoo, o desequilíbrio resultante do balancear do navio era uma constante, para gáudio da criançada, que encontrava nesta fraqueza um certo contraponto para o mal-estar que todos sentíamos.

O que mais me marcou, no entanto, foi uma ida ao Amor da Pátria, onde vi, com algum espanto, senhoras muito elegantes, com os lábios pintados de vermelhos fortes, a conversarem alegremente e a fumarem descontraídas. O entusiasmo foi tal que pedi à minha mãe para fazer o mesmo. Não tive grande sucesso (julgo que nunca o teria), até porque o meu irmão se apressou a contrariar-me, o que não era habitual, afirmando que a mãe era mais bonita como estava, de resto, era a mais bonita de todas as senhoras. O meu amor filial debateu-se então com as imagens cinematográficas que depois povoariam os meus sonhos de adolescente.

Uns bons anos mais tarde, já no final dos anos 60 e princípio de 70 a Terceira, e algumas vezes o Faial, foram novamente, ainda que num curto espaço de horas, visitadas na passagem obrigatória do navio Angra ou Funchal, rumo à Madeira, na viagem de finalistas, ou a Lisboa, na ida para a Universidade, com malas e bagagens para 9/10 meses na Universidade. Nos anos seguintes, e alterando-se o meio de transporte, foi a vez de Santa Maria, principalmente do aeroporto, onde passávamos as noites a jogar, a cantar, aproveitando o convívio com colegas marienses, que nos acompanhavam até quase chegar o avião da América, e que nos dava um novo alento até à hora de embarcar. Mas Santa Maria e as suas praias, em especial a Praia Formosa, onde tive oportunidade de estar mais tempo no princípio dos anos oitenta, permitiu uma outra vivência deste bairro, do seu mar e do saboroso convívio com novos amigos.  Voltaria ainda num contexto bem diferente, já no princípio deste século em Jornadas Parlamentares ou posteriormente na sequência de ventos fortes em Ponta Delgada.

O Faial foi o bairro onde permaneci mais tempo, desde logo nos Plenários da Assembleia Regional durante 3 anos e outras visitas para participação em colóquios ou conferências. Relevo as organizadas pelo Núcleo Cultural da Horta e da Direção Regional das Comunidades, que se prolongaram no tempo, onde fiz grandes amigos de outros bairros, muitos a viveram do outro lado do mar, quer a Norte, quer a Sul: Canadá, EUA e Brasil, ou tão simplesmente em territórios a Este, do continente português e Madeira. Foram momentos inesquecíveis de troca de impressões, em modo mais sério, e de folias e cantorias em modo de convívio. Situações semelhantes foram vividas em Angra em particular nos Colóquios do Instituto Histórico da Ilha Terceira.

Só mais tarde visitei os outros 4 bairros, em momentos e em condições distintas. As Flores e o Corvo, igualmente em Jornadas Parlamentares. É inesquecível a viagem das Flores para o Corvo num barco semirrígido, com o mar bem perto, numa ondulação suave acompanhada de golfinhos. A volta de barco a cada um deles foi uma oportunidade de apreciar as suas belezas pelo lado exterior, tão imponentes e marcantes como as que apreciei no seu interior.

De todos os bairros o que menos visitei foi o da Graciosa, uma única vez no âmbito de uma investigação sobre população mais idosa e apoios sociais. Mas a recordação desses dias, talvez pela sua excecionalidade, nunca se foi esbatendo. A tranquilidade da praça onde apetecia estar e… para sempre recordado, já não sei se até mitificado, o peixe frito acabado de pescar na Folga, comido ali mesmo num ambiente de romance cinematográfico.

Devo ainda referir São Jorge, em que estive também aquando da visita à Graciosa no princípio dos anos noventa, e onde pela primeira vez nesta ilha senti a imponência da sua natureza, num sentir trémulo, extasiante e temeroso. Voltei em férias com amigos há pouco tempo, em período pré-Covid, para apreciar o mar nas Velas, tendo o Pico como pano de fundo, ou o das funduras da Poça Simão Dias.

Por fim o meu bairro de eleição, o do Pico, não porque nele tenha nascido, mas porque renasço cada vez que mergulho no seu mar profundo ou comtemplo mais de perto a sua magnífica montanha, embora ela se me imponha também, ou até mais, um pouco mais longe, em São Jorge ou no Faial.

Mas esta curta viagem por outros bairros não podia deixar de fora aquele onde nasci e vivi 65 anos da minha vida (com mais 5 em Lisboa), onde hoje, mais do que na juventude, o aprecio em cada dia que passa e que me resta. 

Mas os nossos 9 bairros são mais do que territórios que nos moldam, cada um da sua maneira, são mais do que os estudos demográficos e sociais, que nos dão algum conhecimento, são as pessoas que nos fizeram ser quem somos. E em todos os bairros tive, e tenho, amigos que me permitiram ser quem sou e ter vivido a vida que vivi. Uns já se foram e outros rumaram a outras terras levando o bairro, os bairros, na bagagem, que amiúde renovam e enriquecem. 


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Gilberta Margarida de Medeiros Pavão Nunes Rocha, Professora Catedrática Aposentada da Universidade dos Açores, é doutorada em Ciências Sociais, especialidade de Demografia. Tem trabalhos publicados a nível nacional e internacional em especial nas áreas da Dinâmica Demográfica, Migrações, Envelhecimento Populacional, Família e Género.

Na Universidade dos Açores foi Diretora do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais; Pró-Reitora, membro do Conselho Geral e do Conselho Científico. Foi ainda Diretora do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores (CES-UA), atualmente CICS.UAc/CICS.NOVA polo da Universidade dos Açores, sendo ainda atualmente membro deste Centro e da Comissão Coordenadora do Observatório da Juventude.

Entre 2000 e 2006 foi representante do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) no grupo de trabalho de Demografia do Conselho Superior de Estatística. Entre 2002 e 2006 foi Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Sociologia e entre 2006 e 2010 Presidente do Conselho de Deontologia da mesma Associação, sendo a partir da última data membro do seu Conselho Consultivo. De 2001 a 2019 foi Presidente do Conselho Consultivo da Associação Portuguesa de Demografia.  

De 2013 a 2020 foi membro do Conselho Económico e Social em representação da Região Autónoma dos Açores, e por inerência membro do Conselho Económico e Social dos Açores.

Em 2018 foi agraciada pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores com a Insígnia Autonómica de Mérito Profissional.