Corvo. É na Europa, não é na Lua!

Gustavo Fernandes
#Chronicle

Um dia destes procurava títulos de livros usados. Não recordo o que procurava em concreto, mas deparei com o título: “O Sistema Fiscal Português face à Integração Europeia”, editado em 1985 pela Imprensa Nacional. Já havia preocupações a respeito de uma “integração” eminente. Por mais omnipresente que seja a fiscalidade nas nossas vidas, a cultura será sempre o motor da construção europeia, numa Europa “para além das finanças”. Ela não é estática e nos Açores também foi uma construção iniciada pelas sementes primevas europeias e moldadas pelo isolamento secular. Não foi assimilada, porque antes do povoamento só a natureza existia nestas ilhas, sem antecedentes culturais. Nos Açores encontrou chão pelas mãos, pelas vozes e pelos corações dos açorianos, desde os nove povoamentos até hoje. Neste território, em vez de cultura europeia, falamos de cultura humana nas suas mais diversas manifestações. Cultura humana resultante da natureza humana que é o mote para esta candidatura de Ponta Delgada – Azores 2027.  

Vitorino Nemésio referiu-se à natureza arquipelágica dos Açores como “um porta-aviões de 600 Km”. Perdoem-me o Vitorino, as açorianas, os açorianos e os indefectíveis cultores, mas a metáfora bélica é redutora da geografia açoriana. Eles chamam “importância” a essa geografia, privilegiando-a com agendas estratégicas alheias, como se fosse o principal ex-libris destas ilhas. Se não fosse essa “importância” os Açores hoje seriam menores? Em certos corações, talvez. Imagino essa geografia como uma frota de pequenas jangadas de pedra, algumas talvez rumam em direcção às Américas que foram de abundâncias e morada da “décima ilha”, outras na direcção da Europa, que hoje desperta de abundâncias que nunca o foram.  

Eu e a minha companheira mudámo-nos há dois anos para uma dessas jangadas – a Ilha do Corvo. É nos Açores. É na Europa. Não é na Lua. Trouxeram-nos dois nadas: lugar de origem de um dos meus ascendentes e o nosso encantamento por estas ilhas. Assistimos todos os dias deslumbrados pelos últimos crepúsculos nascentes e poentes da Europa. 

Disseram-nos algumas vezes que “não há nada no Corvo”. Tinham razão. Nada de falta de tempo, nada de trânsito (mesmo com um parque automóvel desproporcional), nada de pressas, nada de grandes superfícies comerciais, nada de turismo de massas, nada de croissants e pizza a cada esquina. Como num “pesadelo” de adolescente. É possível sobreviver sem tomate cherry, cenoura bebé ou couscous à mesa. Nascido e criado no arquipélago vizinho, conheço bem as vicissitudes da insularidade. Goste-se ou não disso, quer se lhes escape ou não, são uma das definições do ser ilhéu.  

Receávamos que a estes nadas se juntaria mais um: nada de cultura. Logo percebemos que esse nada, a cultura, é feita por nós. Pequenos nadas, numa pequena vila. Assim temos feito cultura, com a comunidade. Sem ambições de grandeza, expectativas, orçamentos, cadernos de encargos ou meios fabulosos. Mas com uma enorme vontade de viver a cultura com a comunidade, trazê-la a participar, a lembrar, a reflectir, a discutir, a rejeitar, a amar cultura. A viver.  


A ilha é uma casa: almoçamos com música barroca ou peças para cravo bem temperado, trazidos pela rádio europeia lá longe, em vez dos muitos almoços passados em ambiente de trabalho, apressados e indigestos.  

Também demasiadas vezes sentimos em primeira mão a aproximação e passagem das tempestades pelo arquipélago, algumas vezes a caminho da Europa “lá longe”. A casa torna-se um navio com o qual atravessamos essa tormenta e com ele sentimos cada baque, cada saraivada, num exercício extracorporal. E nos dias seguintes do “lado de lá”, muitas vezes a expectativa das notícias “de cá”. “Sentiram muito? Foi muito forte?”  

Sentimos a máquina do Mundo em constante funcionamento e a ela nos entregamos nas graças da fé divina e da fé científica. Alguma delas nos valerá ao superarmos (mais) esta prova. 

Escreveu o Sérgio Godinho que a vida é feita de pequenos nadas e nos Açores a cultura europeia apeou-se nas nove jangadas de pedra há um punhado de séculos atrás – hoje são esses pequenos nadas que se afirmam pelo Atlântico como continuadores dessa cultura que se transformou. Humanizou-se e tornou-se a natureza. No torpor destes basaltos fumegantes e sitiados pelas vagas incessantemente iodadas deste mar, nasceram já em forçada residência artística muitos dos maiores da cultura do mundo. Imbuídos na condição ilhéu, projectaram-se para além da sua ilha e da defronte. Foram mais além.  

Por isso achamos que o Corvo, a ilha que tem passado ao largo dessas Califórnias perdidas de (ilusória) abundância, é uma síntese do viver açoriano. Por mais que a sociedade de consumo dê à costa com as suas incursões quiméricas, alguns ilhéus que a habitam sabem por extispícios de abundâncias passadas que estas são efémeras e preferem o chão seguro da sua autossuficiência. Persistem. A fome é mestra, os soluços do mundo dar-lhes-ão razão um dia.  

Tempos a tempos, assomo ao terraço para avistar a ilha em frente. Com jocosidade chamo-lhe “A nossa varanda com vista para a Europa Ocidental”. 

Estou quase certo que, desde a outra jangada, alguém na sua varanda se (des)ocupa do mesmo.  

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Nascido no colo de basalto da ilha da Madeira, para o seu sopro de vida concorreram ventos, correntes atlânticas, braços e afectos oriundos da Ilha do Pico.
Formado nos rigores da engenharia informática, e desertor desses formalismos por meio de uma inata hiperestesia que o tenta na escrita, a atingir outros estados menos formais.
Até hoje não aspira a obra nenhuma.


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia