Da ousadia de fazer a diferença

Lázaro Raposo
#what you want is talking

Diz-se que o mundo rural está mais à margem, que não chega lá tanta informação. No entanto, foi da Covoada, uma freguesia rural, que veio o Lázaro Raposo, fundador da Cereal Games e adepto do empreendedorismo, mesmo que apenas mais tarde, e do desfrutar da vida. Acompanhem esta entrevista e descubram como se pode ser tudo, querendo ser sempre algo mais!

Uma entrevista por Patrícia Carreiro.


És natural da Covoada, em Ponta Delgada, e tens levado projetos bastante interessantes avante, desde sempre. Fala-nos um pouco das tuas origens e da evolução que a tua vida tem experienciado.
Sim, sou um rapazinho da Covoada, e, como qualquer criança açoriana nascida nos anos 80, num meio rural, o que eu conhecia do mundo era…a minha rua. Cresci querendo ser o que a maioria dos meus amigos queriam ser. Os meus pais eram comerciantes, e nunca soube o que eram férias em família. Trabalhavam o ano inteiro, e sendo uma família numerosa, todos nós ajudávamos. Lembro-me de ainda muito novo ter prometido a mim mesmo que não iria ter esta vida de “trabalhar por minha conta” (na altura não se falava em empreendedorismo). De qualquer das maneiras, deve ter sido a promessa mais vã que eu fiz, porque na realidade cresci sendo empreendedor! Sem querer e sem dar conta, fundei projetos musicais, empresariais, até uma equipa de futebol quando tinha apenas uns 8 ou 9 anos: os Vulcânicos; o meu padrinho aceitou treinar-nos e até desenhei um equipamento amarelo e vermelho (que nunca chegou a ser feito, para bem da moda). Claro que nunca foi nada sério, mas para miúdos da Covoada, em finais dos anos 80, inícios de 90, isso era o equivalente a jogar no Benfica… quase, vá!

Voltando atrás, comecei a trabalhar muito novo e sinto que, ainda hoje em dia, grande parte da ética de trabalho que tenho vem dessa altura. Mesmo mais crescido, trabalhei nas obras para pagar os meus estudos. Guardo ensinamentos poderosos de pessoas que nem sabiam escrever o seu nome. Estudei na universidade dos Açores, onde atualmente também sou professor convidado, e fiz mestrado na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Mesmo tendo a possibilidade de trabalhar em Portugal continental, ou mesmo noutros países, preferi sempre voltar para São Miguel!

A música é uma atividade muito presente no teu dia a dia. Conta-nos como é que ela surgiu, ainda na adolescência/juventude, e como a desenvolves na atualidade.
Surgiu ainda nos meus tempos na Covoada. Como disse, o que conhecia do mundo era a minha rua, e aconteceu que na Junta de Freguesia passou a haver aulas de guitarra gratuitas para quem quisesse. Era uma forma de dinamizar a freguesia. E foi assim que, juntamente com os meus amigos, comecei a aprender a tocar violão. O “meu eu empreendedor”, que não o queria ser, mas que também não queria ficar a tocar as “Dunas” dos GNR com mais 20 pessoas para o resto da vida, lembrou-se que seria mais engraçado criar uma banda. E, mais uma vez, com quem? Com os amigos mais próximos eu criei os Mother Foca. O Pedro Cordeiro, um amigo mais velho e mentor, por sinal também da Covoada, como já tinha tido uma banda, ajudou-nos. Foi a primeira vez que me sentei numa bateria. Passou a ser o meu instrumento, que toquei em bandas rock, folk, em Big Bands, gravei discos e atuei com músicos de renome da nossa Região. Dei aulas de música (bateria principalmente, mas também guitarra e cavaquinho). Na universidade ingressei nos Tunídeos – Tuna Masculina da Universidade dos Açores –, onde posteriormente fui maestro durante oito anos, que culminaram com a gravação de um disco. Além de maestro, fui coprodutor desse disco, letrista e compositor de alguns dos temas, e fui o project manager da campanha de lançamento do mesmo.

Algures pelo meio, ao frequentar um workshop no Teatro Micaelense do HotClub, apaixonei-me pelo jazz. Juntamente com outros quatro colegas desse workshop criamos o quinteto jazz Gimi Jolati. Desde aí, nunca mais abandonei o gênero, embora às vezes tenha sido intermitente. Quando, em 2017, ocupei a posição de baterista no Lava Jazz, aí, sim, tocava jazz todas as semanas, várias vezes por semana. E, mesmo com a mudança da banda residente, foi-me feito o convite para integrar o novo quarteto. São quatro anos consecutivos a tocar jazz com regularidade (tirando um período, em 2020, em que todos nós sabemos o que se passou), com músicos excecionais. Por exemplo, neste novo quarteto tocava com Álvaro Pimentel, o Mike Ross e o Emílio Robalo, e nos intervalos ficava sentado a ouvir o Mike e o Emílio a falarem de música. O Mike e o Emílio são grandes nomes do jazz em Portugal. Eu aprendia só de me sentar ao lado deles!


Como nasceu o teu envolvimento com a Escola de Música de Rabo de Peixe, projeto que te tem levado aos palcos do Tremor e não só?
Só uns anos depois é que integrei o corpo de formadores da Escola de Música de Rabo de Peixe. Esse projeto tinha. desde a sua origem. antigos colegas meus dos Gimi Jolati. Durante uns tempos, perdi a ligação com eles, mas, a partir de determinado momento, comecei a tocar várias vezes com a Gianna, contrabaixista de Gimi Jolati, sempre em projetos diferentes. Em retrospetiva, é das pessoas com quem já toquei mais vezes na vida. E, se não me falha a memória, foi ela que me abordou para começar a dar aulas de bateria em Rabo de Peixe, em substituição do professor anterior.  Acima de tudo, este é um grande projeto social, mais do que musical. Presentear estes miúdos com uma realidade do que é a arte, do que é a música. Do compromisso e dedicação. De há uns anos para cá, os alunos da Escola de Música de Rabo de Peixe têm subido ao palco no Tremor, sempre em colaboração com artistas de fora, que fazem uma residência artística com os miúdos.

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O mundo dos jogos eletrónicos também é a tua praia. Quando e como descobres este gosto?
Isso não se descobre. Vai-se descobrindo. Em miúdo, eu tinha uma Mega Drive e gostava imenso de jogar. Estimulava a minha criatividade. Mas longe de mim, um rapaz da Covoada, pensar que ia fazer jogos um dia. Na universidade fui para informática e, tecnicamente, fiquei um passo mais próximo dessa realidade. Alguns trabalhos académicos já sugeriam a temática dos jogos, embora básicos, mas o bichinho que lá estava foi sendo alimentado cada vez mais. Já no mestrado tive a disciplina de Jogos que, juntamente com disciplinas como Sofware Educativo e Educação Multimédia, inspirou-me para a tese e, posteriormente, para a criação da Cereal Games.
O que eu sou hoje em dia é uma soma de vários momentos e de várias experiências que fui tendo ao longo da vida. Mesmo nas obras aprendi coisas que ainda hoje em dia utilizo na Cereal Games ou a dar aulas. Portanto, para um rapaz que aos oito anos desenhou um equipamento de futebol, fez músicas e letras para os Mother Foca, escreveu sketches, fez teatro, sempre com uma tendência para criar e para as artes, e que agora sabia desenvolver software, fazer jogos, de certa forma, seria inevitável!

À parte lógica do desenvolvimento que adquiri academicamente, com a parte criativa que desenvolvi e trabalhei durante toda a minha vida, só faltava um ingrediente para que pudesse fazer disso a minha profissão, sem ter de emigrar: empreender. Mais uma vez, quebrando a minha promessa de criança, lá fui eu criar o primeiro estúdio de desenvolvimento de jogos nos Açores.


A Cereal Games é a empresa a que dedicas os teus dias de momento. Este é o maior empreendimento da tua vida ou ainda estará ele por vir?
O meu maior empreendimento é o próximo. Se achar que já atingi o topo, ou que não há mais nada que me realize, daí para a frente será sempre a descer. Eu sou um inconformado por natureza, procuro sempre mais. Sou irrequieto, não me consigo conformar e estar parado. Vou sempre à procura do que me possa realizar. E o que me realiza acima de tudo é marcar a diferença. Sempre tomei as minhas decisões com base numa simples questão “onde é que posso fazer a diferença?”. De momento, faço a diferença com a Cereal Games, ao possibilitar talentos açorianos trabalharem numa área em que, de outra forma, para serem profissionais teriam de emigrar, e ao criar valor acrescentado para a nossa Região, ao espalhar o nome dos Açores pelo mundo inteiro. Tenho orgulho em ser açoriano e nunca perco a oportunidade de mostrar a publishers, investidores e à imprensa de videojogos onde é que a Cereal Games está.
Mas há de chegar um dia que poderá ser outro projeto. E se me sentir realizado nesse novo projeto, irei abraçá-lo, se for o que fizer sentido. Nessa altura esse será o maior empreendimento, pelo menos até surgir um outro, e por aí fora.


O Pecaminosa era um sonho? Porquê? Esperavas que este projeto crescesse tanto e tão rapidamente?
Não gosto que coloquem as coisas como “um sonho”. Dá a ideia que, alcançado o sonho, não há mais nada. O Pecaminosa é uma consequência, acima de tudo. Consequência de um trabalho que anda a ser feito desde a fundação da Cereal Games. Embora o Pecaminosa seja uma peça artística, que envolve pixel art, escrita criativa, composição de banda sonora, game design, etc, a decisão do seu desenvolvimento foi baseada numa escolha estratégica e analítica. Foi o Pecaminosa, como podia ter sido outro jogo.

Mas, a partir do momento que a escolha recaiu sobre o Pecaminosa, claro que há, não diria um sonho, mas uma visão sobre o jogo. E essa visão está fortemente ligada ao conceito film noir, a jogos que joguei na minha infância, a séries que vi.
Foi o jogo que permitiu mais visibilidade para a Cereal Games, principalmente a nível internacional. Optámos por trabalhar com um publisher espanhol, mas tivemos propostas da China, da Polónia, da Holanda. Quando fizemos a nossa campanha de crowdfunding tivemos backers do mundo inteiro.

Não acho que o projeto tivesse crescido tanto, nem tão rapidamente. Demorou até bastante tempo. É como um iceberg, a perceção das pessoas é apenas da ponta visível, mas todo o trabalho e tempo que demorou custaram imenso.

E o engraçado é que, estando já o Pecaminosa nas mãos da nossa editora, já estamos a começar tudo de novo com outro jogo. A grande diferença é que agora há mais conhecimento e mais experiência.


A Meia de Rock, também ligada à música, revela o lado da escrita que há em ti. Como descreves este projeto?
O MeiadeRock (MdR) começou como um programa na rádio Marcante de 30 minutos (daí o nome), que comecei com um grande amigo e companheiro musical, durante muitos anos e vários projetos, o João Cordeiro. Ele é da área da comunicação, eu não. Mas sempre gostei de falar sobre música e ele também. O MdR, no fundo, era uma forma de partilhamos as nossas conversas sobre música com mais pessoas. Era numa rádio online, e nós gravávamos as sessões no domingo. Era cansativo, e apesar de termos bons conteúdos nunca gostei muito da forma. Não tenho jeitinho nenhum para a rádio. Por fim, terminamos o projeto também por motivos de agenda. Anos mais tarde, recuperamo-lo, desta feita para escrita online, e não tardou muito a que pudesse constar também das páginas impressas do Açoriano Oriental.

É um projeto que nos permite estar atentos ao que de novo e alternativo anda a ser feito. Já demos tempo de antena (essa expressão não faz sentido para a imprensa, mas não há problema) a vários projetos regionais. Apesar de no MdR até se falar de Pink Floyd e Beatles, damos sempre preferência ao panorama regional.


À margem de tudo isto, quem é o Lázaro Raposo e como vives a tua vida na nossa ilha?
Para responder esta questão, vou usar as palavras do Emílio Robalo: “O Lázaro é um desfrutador”. Ele não me disse isso diretamente, mas depois contaram-me. Ele referia-se à minha agenda ocupada! Dou aulas na universidade, depois vou para a Cereal Games, à noite tocava com ele e, nos dias em que não tocava, ainda tinha treino de futsal. Nem eu próprio me teria explicado melhor. Eu desfruto a vida, de facto. Não no sentido que estou todo o dia na praia a beber piña coladas, mas porque aproveito as experiências que me estão disponíveis. Aproveito os momentos para me realizar, seja na música, no desenvolvimento de jogos, no ensino. O dia tem 24h. É muito tempo, se o soubermos usar. E eu uso este tempo de forma empreendedora, colocando-me sempre a mesma questão “Onde é que posso fazer a diferença?”

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