Dia da Lã

Fernando Pimentel
#Let's go out

Desconhece-se a data exacta da introdução dos ovinos na ilha, muito provavelmente, terá acontecido com a chegada dos primeiros povoadores.

Os ovinos foram, durante várias décadas, de grande importância na subsistência da população da ilha do Corvo. A sua adaptação ao meio local e a sua rápida multiplicação eram a garantia de carne, leite e da preciosa lã utilizada em grande variedade do vestuário, quer interior, como cuecas ou camisolas, quer exterior, como camisolas compridas, na altura designadas por “camisoulas”, e também, na roupa da cama; lençóis, cobertores e colchas.

Pela sua natural resistência às condições adversas do clima e do terreno, o gado ovino adaptou-se muito bem à ilha, vivendo livremente nas zonas mais altas e agrestes.

Segundo o “Arrolamento Geral dos Gados”, o número de ovinos na ilha do Corvo em 1926 era de 1366 e em 1934 de 3447. Até aos anos sessenta do século passado, crê-se que o número de ovinos tenha chegado aos 6000. Devido a este grande número de ovinos, os lavradores chegaram à conclusão que era praticamente impossível cada um ir individualmente buscar as suas ovelhas para a tosquia. Decidiram, então, unir-se, e, em conjunto, reunirem todo o gado ovino. Assim, deu-se o início do “Dia da Lã”, um dia, para além de ser de muito trabalho, era essencialmente de alegria e festa.

Na última segunda-feira do mês de Maio, Segunda Feira do Espírito Santo, aproveitando as sobras do Dia anterior da Festa, pão de trigo, restos de carne e massa sovada, os rebanhos de ovelhas, que pastavam livremente no baldio, eram reunidos e trazidos para o local de Lagos para serem tosquiados.

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Este dia começava bem cedo! Logo aos primeiros raios solares, os lavradores reuniam-se no largo do Outeiro. O Juiz do Mato – pessoa nomeada pela Câmara Municipal – escutava a opinião dos mais antigos sobre se as condições atmosféricas permitiam, ou não, a realização do “Dia da Lã”. Então, anunciava a sua decisão. Quando o veredicto era positivo, a alegria era geral. Formadas as Esquadras - grupo de dez ou quinze homens, constituídos por vizinhos ou por homens da uma rua, cabia ao Juiz do Mato designar o Cabo de Esquadra que, tinha como missão, orientar o cerco às ovelhas. Estes homens partiam, rapidamente, do Largo do Outeiro para o lugar de Lagos. Quando lá chegavam, sentavam-se em cima dos muros dos currais, onde mais tarde as ovelhas haviam de ingressar.

Era chegada a altura de o Juiz do Mato sortear o local para onde cada Esquadra iria recolher o gado. Colocava as sortes (pequenos papéis enrolados na diagonal com uma inscrição prévia de um local do baldio), num boné típico, feito de lã tingida de azul, chamava os Cabos de Esquadra, para cada um tirar a sorte e saber o local que lhe era destinado. Geralmente, os Cabos chamavam os jovens que iam pela primeira vez na Esquadra, para serem eles a tirar a sorte. Era a forma de os envolver na actividade, com entusiasmo, e garantir o futuro, apesar de ser um dia de muita alegria, era também de muito trabalho.

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De imediato as Esquadras partiam em direcção aos locais, previamente, sorteados, como: a “Fonte dos Poços”; o “Serão Alto”; o “Estreitinho”; a “Lomba da Rosada”; os “Cantos”; os “Azevins”; o “Morro dos Homens”; a “Pedra Grande”; o “Cortão Grande”; o “Braço” e o “Junco Queimado” a fim de juntarem os animais. Depois de recolhidos eram encaminhados para o lugar da “Casinha Velha”. Daqui, seguiam em grupo para “Lagos”, onde chegavam cerca de duas horas depois. Com os animais já reunidos nos vários currais, os homens, pelo menos um de cada família, entravam no curral, com o objectivo de encontrar os seus animais. À medida que os iam encontrando, entregavam-nos aos seus familiares, que lhes iam amarrando nas cobras. Quando todos estavam presos, procedia-se à tosquia, que era realizada tanto pelos homens, como pelas mulheres, em simultâneo, com tesouras em aço, geralmente vindas dos Estados Unidos da América. Conforme iam sendo tosquiadas eram libertados da cobra.

Concluído este processo, o Juiz do Mato chamava alguns rapazes mais novos, para irem colocar os cordeiros, ainda por marcar, na entrada do baldio, na zona dos Pasteis, para que estes fossem encontrados pelas suas progenitoras que, entretanto, já tinham sido tosquiadas e libertadas. Cada família tinha uma marca exclusiva nas orelhas dos seus ovinos, que os identificavam. Estas marcas eram registadas na Câmara Municipal de forma a evitar qualquer roubo. Por esta razão, havia uma enorme variedade de marcas ou sinais. Alguns exemplos: troncha na orelha esquerda e buraco na direita, forcada na esquerda e mossa dianteira, ou troncha e mossa por diante na esquerda e forcada na direita.

Nesta altura, em Lagos, já estavam reunidas famílias inteiras, as mulheres a transportarem bonitos cestos de vimes brancos, onde traziam o almoço melhorado, não faltava a carne assada, a linguiça, as filhoses, a massa sovada e o queijo do Corvo. Os mais idosos jogavam às cartas e, em amena cavaqueira, contavam histórias de outros tempos, geralmente, relacionadas com a emigração, lavoura, pesca ou baleação. As crianças divertiam-se a jogar à bola, às apanhadas e a outros jogos próprios da sua idade. Curiosamente, um dos acontecimentos mais característicos deste dia era a liberdade que era concedida às crianças para fumarem na presença dos pais. Era um dia de convívio, partilha e alegria, não só para os habitantes locais, como também para os muitos Florentinos que se deslocavam ao Corvo, em barcos a remos ou à vela, para participarem na festa.

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Fernando António Pimentel nasceu na cidade da Horta, a 2 de Novembro de 1963. Em 1990, iniciou a sua actividade profissional como Electrotécnico nos Correios e Telecomunicações de Portugal. Foi Presidente da Assembleia Municipal do Corvo de 1997 a 2001. Em 2005, foi eleito Presidente da Câmara, cargo que ocupou até 2009.

Em 2016, publica a obra Nossa Senhora dos Milagres, padroeira do Corvo, onde aborda tudo o que está relacionado com a padroeira daquela ilha; em 2017 lança Memórias e Tradições da ilha do Corvo, onde recorda as vivências corvinas. Dois anos depois, publica Corvo a ilha dos afectos, onde faz uma retrospectiva desde a descoberta até à actualidade. Em 2020, sai o livro Igreja do Corvo, sobre a história deste templo. Em 2021, é a vez dos Eleitos Locais da ilha do Corvo, de 1975 até 2019. No corrente ano dá à estampa Memórias fotográficas da ilha do Corvo.

Dedicado às causas sociais, foi presidente da Comissão de Proteccção de Crianças e Jovens em Risco, em 2019 funda a Cáritas do Corvo, sendo eleito da mesma. É também colaborador da Liga dos Amigos dos Doentes dos Açores.


*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia