Do Conhecimento dos 9 Bairros

José Guilherme Reis Leite
#Chronicle

Como diria o nosso frei Diogo, no seu jardim.

Tornei-me, muito cedo, corsário (sem o saber) nas minhas ilhas e tentarei explicar porquê nesta resposta a um desafio do Nuno Costa Santos para escrever uma crónica nos 9 Bairros, que ele classifica de projeto-piloto destinado a unir os açorianos.

Os meus pais punham grande cuidado na educação informal dos filhos (eu e a minha irmã, quase gémea). Sem nos revelar qual o programa, levaram-nos desde bem pequenos a visitar as ilhas, primeiro as “ilhas de baixo” e mais tarde São Miguel. Uma viagem inter ilhas ainda nos anos cinquenta do século passado era pouco menos do que uma aventura, mesmo feita com as comodidades possíveis na primeira classe dos navios da Insulana. Agora, visto à distância, apercebo-me que as viagens eram um prazer para os marinheiros e um tormento para aqueles outros que não resistiam ao mar. Era o caso da minha mãe, que só de pensar que ia embarcar ficava “enjoada”.

Mas lá íamos, no Carvalho Araújo ou no Lima de ilha em ilha até ao Faial. A paragem nos portos das vilas era de escassas horas, limitando isso a possibilidade de grandes passeios. Valia-nos o termos em cada porto pessoas da família. Da família da minha mãe, que tinha dezenas de primos por aqui e por ali. Aonde chegávamos havia receção amigável e uma refeição à nossa espera. Para nós e para o nosso pai era um regalo, para minha mãe nem tanto. Ficou-me sempre na memória vê-la, lívida, sair quase em braços do navio para as pequenas lanchas que nos levaram até aos minúsculos cais. Neste caso na vila das Velas, em São Jorge, onde uma prima tentava consolá-la. O pequeno-almoço com o inevitável queijo de S. Jorge tornava-se numa ameaça e só a vejo beberricando chá preto sem açúcar com torradas sem manteiga. Nós, por nosso lado, gulosos comendo espécies e pão com queijo.

Com dizia, tínhamos que aproveitar o escasso tempo para em pequenas voltas de carro ir a alguma paisagem mais emocionante, mas perto da povoação. Em Santa Cruz da Graciosa, onde vivia uma cunhada da minha mãe, à vista do Monte da Ajuda; nas Velas ao miradouro da Queimada ou um salto à Urzelina e no Pico o melhor era mesmo o Pico visto fosse de onde fosse.

Não resisto a contar o que aconteceu em São Roque quando num desses périplos lá chegamos numa bela manhã e nos preparávamos para desembarcar. A esperança era que umas horas fora do navio animasse minha mãe. Com surpresa ao chegar a terra, com as peripécias do costume, foi pavorosa a desilusão. Estavam em plena operação de derreter um cachalote e o cheiro tão nauseabundo fazia ter-se saudades, mesmo para ela, do barco.

Mas o melhor realmente das viagens era a aproximação às ilhas e o afastamento da Terceira que ficando mais separadas das do grupo central ia diminuindo de tamanho tornando-se diáfana e envolta em neblina que a tornava quase irreal. 

Os meus pais passavam horas estendidos em cadeiras próprias no convés enquanto nós explorávamos as redondezas e fazíamos conhecimento com outros passageiros, alguns, poucos, também crianças.

Chegados ao Faial as coisas melhoravam porque havia a doca (o que metia mal disfarçada inveja aos terceirenses) onde o navio atracava poupando-nos à miséria das pequenas lanchas que balouçavam junto ao portaló, obrigando a uma ginástica perigosa para nelas entrar.

Aí, na Horta, morava outra prima chegada de minha mãe em cuja casa, bem no centro citadino, nos hospedávamos enquanto o Carvalho Araújo ou o Lima, que em ambos viajávamos, iam às Flores e Corvo, que não faziam parta da nossa peregrinação.

A Horta tinha um ar mais “civilizado”, alguns diziam cosmopolita. Os nossos hospedeiros tinham um filho da nossa idade e com ele podíamos brincar. O tempo da estada permitia uns passeios mais prolongados até à Caldeira, ao Capelo ou às termas do Varadouro. Minha mãe, restabelecida, visitava senhoras amigas e fazia compras nuns grandes armazéns dos tempos áureos da Horta dos Cabos, que a nós, pequenos e ignorantes, julgávamos semelhantes aqueles que havíamos ouvido falar que existiam em Paris. Imagine-se ao que chega a imaginação de uma criança.

Creio que fizemos 3 destas viagens, a última delas em 1958 para ir ver, entre temores que não bastavam para matar a curiosidade, o vulcão dos Capelinhos na sua fase de lavas incandescentes. Um espetáculo medonho e inesquecível.
Talvez em 1956 desta vez na Sata, para poupar minha mãe aos seus épicos enjoos, fomos a São Miguel.

Eu já lá estivera numa rápida viagem anterior, também na Sata, mas só em Ponta Delgada. Desta feita íamos por mais tempo, uma semana pelo menos. Na ilha tínhamos também parentes, um tio viúvo e uns primos da nossa idade, filhos de outra prima de minha mãe, com quem brincávamos.

A cidade era tristonha (já então conhecíamos Lisboa) ainda que grande e a Horta levava-lhe a melhor. A ilha era deslumbrante e como tínhamos tempo visitávamos os ícones micaelenses: as Sete Cidades, a Lagoa do Fogo, a Ponta da Madrugada e mais e mais.

Não conhecia eu ainda as Flores, mas era óbvio que o subterfugio dos angrenses em afirmarem que essa era a mais bonita das ilhas açorianas era simplesmente para não admitirem que São Miguel esmagava a Terceira.

Júpiter cega aqueles que quer perder!

Contudo, o mais maravilhoso estava para acontecer. O meu pai tinha reservado, sem nós pequenos sabermos, uma surpresa, uns dias nas Furnas no hotel Terra Nostra. A nós, inocentes, parecia-nos que estávamos sempre em festa. As refeições eram como se todos os dias fosse dia de anos da avó ou tios na Terceira. O parque, como se o jardim de Angra tivesse por magia sido multiplicado por dez. A piscina de água férrea e quente, um conto de fadas. Para mim então, que sempre passava tormentos, devido ao frio da água nos banhos de mar, um espanto. Agora o problema invertia-se. No mar era entrar na água, aqui era sair.

Ficou na memória o comer bolos lêvedos, que então só havia nas Furnas, com doce de tomate de capucho.

Em 1959, já eu tinha voltado com mais tempo e em condições completamente diferentes à Graciosa, a São Jorge e ao Pico, o que me permitia conhecer paisagens e pessoas e por isso fazer comparações, fomos, eu e a minha irmã, com um grupo de amigos, às Flores e ao Corvo de novo no Carvalho Araújo. Completava-se o conhecimento das novas ilhas, porque já havia estado em Santa Maria no regresso de avião, de Lisboa, em 1954. A ilha, coitada, com manifesta injustiça, era o purgatório, onde se esperava a possibilidade de sair na Sata.

Nessa altura já tinha lido, com manifesta superficialidade e insuficiência, textos de Brandão e de Nemésio, pescados ao acaso na biblioteca de meu tio, o João Ilhéu. Não me apercebi talvez do privilégio que era visitar aqueles territórios em estado pouco menos que selvagem. Gostei das paisagens, mas menosprezei o ambiente humano. Começava já a estar estragado pela “civilização”.

Aqui tem, meu caro Nuno, como me tornei, eu também, corsário das nossas ilhas e conheci os “9 Bairros”!

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José Guilherme Reis Leite nasceu em Angra do Heroísmo em 1943. Licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1968), doutorou-se em História pela Universidade dos Açores (1994). Como historiador tem-se ocupado de inúmeros aspetos da cultura açoriana, nomeadamente históricos, literários e políticos, em diversas épocas, sendo de destacar aqueles que interessam ao conhecimento do processo autonómico açoriano. Muitos dos seus trabalhos estão também publicados em atas de reuniões científicas, em obras coletivas e em outras de cuja edição se encarregou. Com uma longa carreira política, foi deputado regional e nacional, Secretário Regional da Educação e Cultura (1976 e 1980), membro das Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa, entre outros.