Especial da Macaronésia

António de Névada
#House Special

MACARONÉSIA

(Do Grego makarōn nēsoi, Ilhas abençoadas)

Segredos e Conselhos (a título de nota prévia)

Criou-se a ideia de que elas não passam de naus encalhadas às portas de nenhures, isoladas em si e umas das outras. Que injustiça!... porquanto é ígneo e flamejante o desvelo que as habita, persiste a audácia qual demorado anseio, para além da constelação que transcende a terra firme e as lavas que lavraram os campos no seu desmedido compasso. Germinadas de braços dado com o aroma dos dias, noz-moscada de encontros e desencontros, de partidas e regressos: nelas, cabem, a condição como cada elemento reage perante o fogo, lugares de justa conta (de tenteio), onde uma pitada a menos é de menos e uma pitada a mais é de mais.

(sobreviver no imenso azul)

Mar salgado, em abundância; Terra ocre, em camadas sobrepostas, chã e crã; Seixal, vulcânico, roçagado junto à costa; Saudade, na tradição da épica melancolia; Perseverança, essencial e indispensável; Histórias, por contar, como todas o são; Imaginação, q.b.;

I Will Fall, Alex Da Silva, 2018 (excerto)
I Will Fall, Alex Da Silva, 2018 (excerto)
I Will Fall, Alex Da Silva, 2018 (excerto)
I Will Fall, Alex Da Silva, 2018

I

Ao mar salgado com travo a sargaços
Junta-se devagar um punhado de terra
E uma mão cheia de calhaus rolados.

Pulveriza-se tudo com uma boa dose
De criatividade ou imperativo dom
Que aqui a sobrevivência é soberana.

Na medida certa dos extremos
E no coar da espiritualidade
No negro e no ocre das ribeiras
O véu da noite adormece os anjos
(e os demónios)
Sob o ensanguentado das pétalas
Que se desprendem do sol poente.

Dizem os antigos que teremos apenas
O mel do doce favo e o salitre do corpo
Os condimentos que restam dos tempos
E da parcimónia passagem dos tempos
A luz que colhemos dos céus e a miragem
Onde a Atlântida afundou seus templos.

Lançados de bombordo a estibordo
Ao acaso pela mão indecisa de deus
Foram semeados o paraíso e o insólito
As flores em prece e o peito talhado
No amparo das asas brancas abertas
E na envergadura das velas ao vento.

II

Sempre que o horizonte se cobre de neblina e não vemos senão a própria sombra refletida nas películas de água suspensas pelo ar, sempre que o vento sopra em súplica e as embarcações se abrigam nos cais de partida, e esta gente se aconchega entre as quatro paredes da casa que se alonga num jardim que vê as suas flores decepadas... No silêncio, que irrompe o silêncio, quando tudo queda sem voz sem melopeia e o tempo colhe o destilar dos instantes, e da cevada e do trigo se pondera o pó da moagem dos signos, relembramos o gosto do figo avermelhado e acendemos um relâmpago, chicoteando de luz a forja e a brasa.

Quando celebramos os equinócios no rebento e no tombar de cada folha, porque somos frutos da mesma estação, elevam-se os braços e colhem-se as estrelas, teimosamente! como quem se agarra aos versos plenos e prenhes da poesia.

Trituramos a cana e repisamos os bagos da videira. No lagar aonde se depurou o azeite da oliveira, rega-se com um fio de oiro o caráter e a estética dos sentidos, untam-se abundantemente os sonhos e esta pretensão de existir, que no lume brando onde retemperamos a memória, parte-se o pão em bocados e repartem- se o miolo e a côdea da cozedura.

Sob a nudez do estio, estendemos panos de púrpura sobre a terra crua, e por fim o desapego se apura nos nossos gestos firmes! Aí então, manchados de luas e urdindo o pensamento nas linhas que amadurecem a malha do silêncio, é hora de nos sentarmos uns à volta dos outros em forma circular: serve-se assim, num prato singelo, a oferenda.

António de Névada,
Outono de 2021, Angra do Heroísmo.


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António de Névada (António Neves)

Nasceu em Lisboa, em 1967, viveu toda a infância e adolescência em Cabo Verde, ilha de S.Vicente, completou os estudos liceais em Mindelo, a cidade do Monte-Cara. Viveu em Coimbra alguns anos da sua juventude, e fez os estudos universitários na FCTUC – Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (Eng.ª Eletrotécnica). Regressou à sua condição islenha e vive nos Açores há 20 anos, em Angra do Heroísmo. É poeta e ensaísta, com colaboração dispersa em vários jornais e revistas. Presente em várias antologias, tem dois livros de poesia editados: Acto Primeiro ou o Desígnio das Paixões, pelo ICLD (Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco); e Esteira Cheia ou o Abismo das Coisas, pela Editora Angelus Novus.

I Will Fall, Alex Da Silva (2018)
I Will Fall, Alex Da Silva (2018)


Alex da Silva Barbosa Andrade (1974-2019), nascido em Luanda, Angola, filho de pais cabo-verdianos, cresceu nas Ilhas de Cabo Verde. Licenciou-se com menção honrosa, em 1999, na Academia de Artes e Arquitectura Willem de Kooning, em Roterdão. Seguiu-se a pós-graduação, em 2000, na Academia Minerva, em Groningen, na Holanda. Considerado um dos valores da moderna pintura cabo-verdiana, Alex da Silva propõe reflexões sobre a condição existencial do homem e a sua relação com o espaço social, utilizando telas de grande dimensão.

Quando surgem os primeiros traços num quadro, nasce uma estória ou uma ideia... E a estória vai-se desenrolando, como um teatro de vida... Enquanto pinto, passo hora após hora observando as minhas criaturas e a pensar sobre as boas coisas a que se prestam.
Basicamente, é o meu modo de escrever poesia.