O mar que me (en)canta

Miguel Machete
#Chronicle


Nasci em Lisboa. No meio da cidade. 

O mar não passava por essas bandas (parece que continua a insistir em fazê-lo) e o único reservatório de água que tinha por perto, com volume apresentável, era mesmo a Fonte Luminosa. Aquela no topo do lado direito da Alameda, se a referência for, perceba-se, a porta do prédio que eu habitava. Não foi por isso um amor crescente à vista desarmada, mas antes um encontro fortuito e indelével. Divagando, recordo que em meses de Agosto longínquos, se faziam umas funestíssimas 3 horas por cima do alcatrão que dava acesso às praias atafulhadas da Caparica, mas lá chegado só lhe vislumbrava a pele e pouco mais (permanecendo, porém, na volta à urbe, o salgado de boca).

Escarafunchando avante a memória esporádica, talvez chegue agora a Sesimbra, aos 6 anos de idade, numa visita a uns amigos de família, onde vi um deles entrar verdadeiramente no mar. Serviu-se de uma máscara de mergulho, fato, barbatanas, uma arma de caça submarina e outros equipamentos extraordinários. Lembro-me desse amigo (nunca mais conheci ninguém chamado Armindo) me ter deixado experimentar, nas águas frias daquele local, a tal máscara que tinha acoplada um tubo preto por onde eu conseguia respirar. 

E lembro-me de estacar. 

Como se os meus olhos fossem os pés de alguém a pousar na lua, imagino. Mas com peixes e pedras e algas e coisas marinhas à mistura, claro está. Junto-lhe talvez uma porção generosa de Cousteau na televisão, um raminho de National Geographic nas revistas que mensalmente me chegavam a casa (cortesia de um primo do Canadá) e uma pitada de um desconhecido ancião do meu sangue, que nos tempos muitos idos foi pescador (são como os loucos: mesmo que não se conheçam, certamente têm pouso na nossa genealogia) e tenho a provável origem da vontade de me chegar ao mar – pelo avesso e ao reverso. 

Já a música foi um namoro lânguido e quente de berço que conheci na voz do meu pai, quando me cantava à noite, para me chamar o sono. Desde que me lembro (ou não)  fui crescendo com canções, com as vozes, com as histórias que elas traziam. Umas vezes de um senhor José Afonso, outra vezes de um tal António Gedeão (parece que vinha de uma terra assombrada onde o tratavam por Rómulo), um José Mário, um Sérgio, um Ary. Ouvir sons organizados em múltiplas combinações a fazerem a cama à palavra e juntos invadirem a privacidade do nosso corpo, dos sentidos, orientando-nos para diferentes rotas que sabe-se lá onde poderão desaguar, é como colocar uma máscara de mergulho na cara e imergir.

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Este casal de referências ladeou-me a partir da minha infância.

Por isso, não suscitou estranheza o meu ingresso no curso de Biologia Marinha e Pescas na Universidade do Algarve nem tão pouco foi esdrúxulo ter o primeiro colectivo musical (Ollam – onde maltratava insistentemente uma guitarra clássica e eventualmente cantava) nascido nesse mesmo lugar. Foi no decorrer desses anos, ainda no milénio passado, que pela mão de um colega e amigo “autóctone” encontrei o Faial, lugar que não conhecia, mas onde sempre tinha querido viver. Do conhecer à união de facto foi uma questão de oportunidade. Em 1997, cheguei à ilha que me esperava e de onde nunca mais saí (pelo menos por muito tempo). Passei dias consecutivos à tona ou debaixo de água, na maior parte das vezes porque o trabalho (um estágio no Departamento de Oceanografia e Pescas) o exigia e, na menor parte, porque tinha tempo livre. O mar nos Açores não se explica. Ou melhor, vai-se explicando à medida que amostramos, testamos, pescamos, recolhemos, contamos, visualizamos, analisamos, concluímos, erramos mas… não se explica bem, faço-me entender? É muito grande. Encerra coisas e vidas para além da mais prolífera imaginação. E esse facto torna o desafio permanente. Às vezes assustador, outras excitante. 

Já o panorama local, no que à cultura e música em particular dizia respeito, não era (aparentemente) estimulante. Viviam-se tempos de ausência onde o mote desportivo–cultural (por esta ordem) imperava, dando-se muito pouca nota de qualquer manifestação criativa, fosse no teatro, na dança, nas artes plásticas, na música. Recordo-me de me ter apercebido, poucos dias antes do primeiro 25 de Abril, que iria viver na ilha, que não aconteceriam quaisquer comemorações da data e muito menos se ouviriam concertos (na altura, uma constatação insuportável para o jovem Miguel). Assim, nasceu o meu segundo projecto musical (Prozack), parido à pressa, por forças da circunstância (e da revolução, claro está), que poucos dias depois se estreava ao vivo no Bar do Clube Naval da Horta. Corremos o mesmo alinhamento duas vezes. Eram sete, as canções. 

Daí para cá, veio o futuro que hoje já conheço, repleto de novidades para ele e para ela (os membros do casal). No ofício, dediquei-me à pesca (no sentido literal) e à sua monitorização, gerindo uma equipa de competentes e intrépidos observadores que vivem temporariamente a bordo dos navios, recolhendo informação científica crucial sobre a actividade extractiva. Ou seja, produzimos farinha para que outros possam amassar e cozer o pão.

O restante tempo ocupei com dedicação ao movimento associativo, primeiro no teatro (Teatro de Giz) e depois na música (Música Vadia) tendo ajudado a, para além de outras podas, criar o Festival MUMA. Um festival que, à semelhança de outros, voltou este ano a sentir na cara os ares da maresia, depois de uma noite escura de repressão Covidesca. Nos entremeios disto tudo, e porque o mar daqui é um poço sem fundo de alimento que chama a si incautos navegadores, esbarrei o estibordo de mim num terceiro projecto musical – Os Bandarra. Foi uma apneia de amor, de partilha, criação de maré baixa e da profundidade que deu à costa dois álbuns e muitas dezenas de concertos pelos 9 bairros e periferias. Temos pensado juntos que seria bom voltar a vestir o fato de mergulho, calçar as barbatanas, ajustar o cacho de chumbos à cintura, colocar as máscaras e OPE! 

Estacarmos.

Só mais uma vez.

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Biólogo Marinho de formação, iniciou-se no movimento associativo no Faial em 1998, no grupo de Teatro amador "Teatro de Giz". Foi actor em várias peças assumindo depois a produção e organização de espectáculos, festivais, filmes, já na direcção do grupo, até 2012. Destacam-se nesse período três edições do festival de teatro do Faial e uma longa metragem de José de Medeiros, "A Ilha de Arlequim", onde foi actor e produtor. Nesse mesmo ano, funda a Associação cultural Música Vadia que, entre outras coisas, se ocupa da produção e criação de eventos musicais e que, desde 2015, produz um festival anual de música no Faial – MUMA. Foi ainda fundador do projecto musical "Bandarra" que, entre 2007 e 2013, editou dois álbuns de originais e deu dezenas de concertos nos Açores e Continente e foi vocalista e percussionista no projecto musical " O Experimentar", fundado pelo faialense Pedro Lucas.



*Texto escrito de acordo com a antiga ortografia