Os livros são arquipélagos de memórias

Pedro Arruda
#Chronicle

As ilhas são, foram sempre ao longo da História, lugares de utopia. A elas associa-se sempre o idílio da mais fértil imaginação. Mesmo antes de Thomas Moore, desde Platão e a sua Atlântida, que todos os continentes ambicionam ser ilhas, como se as ilhas fossem o mais próximo que, como homens, podemos chegar do paraíso perdido, do Éden mágico e inicial. De certa forma, os livros são, também, ilhas. Ilhas de imaginação. A relação entre a literatura e o imaginário da Ilha é extensa e foi sempre profícua. As ilhas, perfeitamente delimitadas geograficamente, são o cenário ideal para a construção de universos narrativos, para a condensação poética e novelística. É como se no isolamento da ilha houvesse uma espécie de depuração do sujeito literário, que permite ao autor e, acima de tudo, ao texto, afirmar-se autonomamente, sem o distúrbio de ruídos exteriores. As ilhas, tal como os livros, guardam dentro de si memórias do futuro, a sua é uma geografia de possibilidades, vulcânica e imprevisível.

Há uma reverberação da memória naquilo que lemos ao longo da vida, uma marca de água que fica impressa na alma, como a tinta das letras fica tingida nas folhas brancas do papel. Uma espécie de inscrição, de carimbo no papel que vai amarelecendo com a força do tempo que passa. O brilho de uma ideia, uma frase de belo efeito, um verso ou uma simples metáfora, como as metáforas do carteiro de Pablo Neruda. São essas memórias que nos fazem crescer. São elas os tijolos que fazem o edifício de nós, pequenos blocos, como coloridos legos, que juntamos em construções impossíveis e imaginárias, enormes e labirínticos edifícios como nos quadros de Escher. É por lá que passeamos os sonhos, nesses universos alternativos. Nessas ilhas de imaginação inconsciente. Como imensas bibliotecas borgeanas, espaços inexequíveis e sempre repletos, ao ponto de rebentar, e na mente guardamos memórias, como se fossem joias numa arca do tesouro do pensamento, mas sem um mapa que marque o x da verdade absoluta e a porta para o infinito, ou o lugar na ilha onde corsários despejaram o saque e a alma.

© André Almeida Sousa
© André Almeida Sousa

Essa construção interior, essa labiríntica Babel que vamos erguendo dentro de nós é como a construção eruptiva da ilha. A acumulação desenfreada e desorganizada de objetos mentais, de fragmentos literários, pedaços de pensamento, restos de textos, frases, palavras desconexas, num caos organizado. Como uma praia de seixos, uma imensidão de pequenas pedras roladas pela força do mar, embatendo umas nas outras com sons profundos na mudança das marés. Sobrepondo-se, encostando-se, rolando e submergindo, umas sobre as outras. Reemergindo a seguir, com cores e formatos distintos. É essa a memória dos livros, uma pintura impressionista feita na tela da mente, pintada no vazio original da alma, um quadro na tela virgem da imaginação. Anos de ondas batendo na praia. Anos de ideias acumuladas nesse desembarque, nessa acostagem à terra firme da memória, no infinito navegar da mente, no vasto oceano das palavras.

Os livros são também o lugar onde os lemos. E é isso para mim, também, a ilha. Um lugar de leitura. Na solidão da infância na ilha encontrei nos livros um universo só meu, um lugar de conforto e de afeto, as ilhas e os livros não podem ser dissociados na sua dimensão de encontro com a circunstância do humano, porque ambos trazem consigo a possibilidade de horizonte.


Pedro Arruda, Vila Franca do Campo, 6 de junho de 2021