Pulsar

Andreia Fernandes
#Chronicle

Cheira a maré vazia.

Do passeio marítimo da Baía do Fanal quase que se veem as lapas agarradas à pedra. Negra, de lava, hoje com o mar verde, a espelhar o Monte Brasil e a sua muralha. Ao longe, como um camaleão, torna-se azul atlântico - nestes dias em que o sol o deixa ser, até São Jorge. Sem a escala de cinza com que a neblina o gosta de desenhar.

Cruzo-me com três senhoras. Uma linda grávida. Um casal acima dos 60. Uma avó com o neto. Caminhamos pela manhã, num mundo fora do bulício real, que se começa sentir assim que subimos a rampa. As obras avançam no jardim urbano que vai nascer à entrada da cidade. 

Do Alto das Covas avistamos um movimento lento. Angra está a acordar. 

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Mas num amanhecer vagaroso. 

Os negócios mudaram-se para fora da cintura urbana. Mantêm-se no centro algumas lojas e poucos residentes. Querem começar a crescer os alojamentos locais, e outros menos locais. 

Construções avançam no Porto das Pipas, no mesmo vagar. Na marina, mastros e velas rangem calmamente com a maré. Nas ruas de calçada já se veem viajantes. Sinais de descanso à pandemia.  

Mas não há indícios de Sanjoaninas na rua. Nesta altura já havia marchas a ecoar, cheiro a tascas e costaneiras. Uma sangria ao almoço para aliviar a tarde. E haveria uma fogueira para saltar ao São João, na maior noite angrense do ano. 

Esperamos pelo retomar boémio da cidade. Angra assim o é, pela sua geografia e história. 

© Rui Lourenço
© Rui Lourenço

Ponto de paragem de soldados e marinheiros. Angra do Heroísmo, pelas lutas liberais aqui travadas. Porto de escalas comerciais, de gentes e culturas.

Cidade de tertúlias, de tangos, de música e gargalhadas, de casas de meninas. De engraxadores e barbeiros, onde se sabiam os enredos. De filósofos da rua, como lhes chamou Augusto Gomes, que se perderam com a morte do último, o José Greta. Homossexual, como outros, de outras ilhas açorianas, que escolheram a Terceira como sua casa e aqui encontraram acolhimento (assim descreveu Victor Rui Dores).

Varandas e cores adornam a arquitetura. O traçado urbano, a localização geográfica e história marítima (enquanto porto de escala na carreira das Índias), são motivos que levaram Angra do Heroísmo a ser uma das primeiras entidades portuguesas a fazer parte da lista do Património Mundial da UNESCO (a 7 de dezembro de 1983).

© Rui Lourenço
© Rui Lourenço

Apesar de, no primeiro dia do ano de 1980, o relógio da Sé ter parado pelas 15h40. A hora em que o sismo a derrubou. Mas sem retirar da história monumentos que ainda conserva.

Sobre o traçado da praça velha, passeia-se até à Rua Direita. Desce ao Pátio da Alfândega e põe-se sobre a angra que lhe dá nome e onde hoje repousam as âncoras de naufrágios. 

As casas por cima da Rocha espreitam os navegantes e o horizonte, que nos encerra e liberta. 

Por aqui foram abrindo bares e oficinas de arte, que vão passando e fechando, aclarando a noite e encerrando a luz. 

Hoje, dentro de portas, contorna-se a paragem a que a saúde pública nos obrigou. Há livros a ser escritos, quadros e esculturas a tomar forma. Música a trespassar as paredes do Conservatório.

E uma enorme vontade de vida a pulsar sobre a cidade Património Mundial.

© Rui Lourenço
© Rui Lourenço

Andreia Fernandes (Angra do Heroísmo, 14-07-1979).
Licenciada em Jornalismo, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1997-2002) e Pós-Graduada, pela Universidade Aberta, em Gestão/MBA (2011).
Foi Jornalista do Jornal Diário Insular (2002-2006) e da RTP-Açores (2003-2008), e responsável de Marketing e Comunicação da Terauto (desde 2006). É membro da direção do Instituto Açoriano de Cultura.